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Minorias Transformadoras

Por Elisangela Carlosso Machado Mortari*

Resumo: Parte-se do conceito de minoria como articulador entre o processo de colonização italiana no Rio Grande do Sul e a construção de uma nação brasileira. O enquadramento dos colonos como minorias culturais mobiliza uma ação transformadora através da memória narrada que anula o espaço e o tempo da experiência migratória. O lugar construído é legitimado pela presença interventora da mídia, que legitima o potencial transformador das minorias culturais.

Há algum tempo tenho me dedicado a pesquisar sobre as identidades transitórias e a experiência mídiatica pós-moderna, focalizando para o aspecto da imigração italiana no interior do Rio Grande do Sul. Atualmente, me questiono se, passados mais de cem anos da chegada dos primeiros imigrantes, o conceito de minoria explicaria o potencial transformador desses sujeitos sociais que atuam simbolicamente na região da Quarta Colônia/RS.

A colonização italiana na parte central do estado gaúcho iniciou em outubro de 1877, com a chegada de 100 famílias no Barracão de Val de Buia, onde permaneceriam por alguns meses, aguardando a demarcação e a distribuição de lotes de terra. A colônia abrangeria o espaço onde estavam localizados os municípios de Santa Maria e Cachoeira do Sul. No início de 1878, já eram 1.600 pessoas acampadas no Barracão e suas cercanias.
 
As condições precárias na instalação desses imigrantes ocasionaram um grande número de mortes, proporcionando a construção de um elemento fundador no discurso da minoria imigrante algum tempo depois. Conforme dados do IBGE, entre 1881 e 1939, entraram no Brasil 4,225,638 imigrantes, dos quais, 1,438,099 italianos, ou seja, 34% destinados, principalmente, para os estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e Espírito Santo.

O período de maior entrada de italianos no país é entre 1884 e 1893, em decorrência das condições favoráveis para tal. No Rio Grande do Sul, de acordo com os dados do Anuário Estatístico, o período de maior entrada de italianos é entre 1887 e 1891. Do total de imigrantes que chegaram a este estado (154,682), entre 1882 e 1914, em torno de 43% são italianos (66,901). As zonas do Vêneto, Veneza, Piemonte, Campânia e Lombardia foram as que abasteceram grande parte da mão-de-obra que emigrou para o Brasil.

Esses números mostram a impressionante fuga do lugar de minoria: a massa migrante que deixou a Europa no século XIX não saiu simplesmente em busca do sonho do eldorado, mas partiu para a conquista do se reconhecer e do ser reconhecido como cidadão.

Entretanto, o lugar que o esperava era o do colono e, desprovido de uma pátria, inventa um conceito de nação. Contardo Calligaris, psicanalista italiano que imigrou para o Brasil em 1989, portanto cem anos depois que seus compatriotas deixaram o velho continente para se aventurarem na terra prometida, encontrou um povo que não reconheceu a nação brasileira como sua e que acolheu sua ainda condição de minoria:

talvez os colonos brasileiros não possam voltar (para a Itália) porque justamente o Brasil não conseguiu fazê-los outros, quero dizer, não conseguiu fazê-los brasileiros. Imagino que a dificuldade de voltar seja proporcional a um fracasso que não é econômico, é antes cultural. Como voltar para a Itália, por exemplo, se saí renunciando a uma língua que não me reconhecia como sujeito e a língua que escolhi não me reconheceu?(CALLIGARIS, 2000: 21/21)

Sem poder voltar os imigrantes se renderam ao estado de colonos, e em pouco tempo a variação semântica da palavra se tornou um fardo para a comunidade que prosperava economicamente, mas continuava abandonada culturalmente. A rejeição ao estigma do colono obrigava-os a deixar tudo o que revelasse sua condição subalterna: o sotaque, os hábitos, os festejos, a música, a arquitetura, o território.

Para uma descendente que testemunhou não saber como se identificar, se como italiana ou como brasileira, o fato de um colega de trabalho, nascido na cidade, a chamar de colona, a deixava profundamente irritada. Em meio a muitas brigas e discussões ela se defendia dizendo:

“posso até ser colona, mas tenho onde cair morta”.


Muitos imigrantes e seus descendentes rumaram para a cidade em busca de posição e de reconhecimento social. A política nacionalista do Estado Novo fomentou o desprezo aos imigrantes, fazendo do estrangeiro um indesejável no cenário social brasileiro. O movimento de 30 e o projeto modernista inauguraram a disputa entre o agrarismo e o urbanismo. A intelectualidade brasileira incentivou a posição urbana em detrimento das atividades rurais, gerando uma rejeição dos italianos ao seu próprio estilo de vida.

Sem qualquer referência, os italianos e seus descendentes abandonaram a colônia e criaram artifícios para explicar mais esta partida. Era preciso construir o futuro, garantir a sobrevivência dos filhos, gerar gerações. A vida na cidade os tornou menos colonos e a cidade se fez menos urbana. A presença italiana em Santa Maria modificou os hábitos da população, que era formada pela miscigenação de portugueses, índios, alemães e negros. A italianidade era e é tão forte, que gerou um tipo diferente de brasileiro. Acredita-se que, de 60 a 70% da população santa-mariense tenha algum parentesco com italianos.

Os colonos recusaram a dupla diferença da minoridade - estrangeiro e atrasado – e desenvolveram um operador que os tornavam semelhantes aos outros: a ficção. O lugar ficcional que habitaram os italianos do início do século XX é o mesmo acionado pelos descendentes no final do mesmo século. Criaram efeitos de verdade, eventos que os mantiveram em posições seguras e reconhecíveis. Entretanto, o lugar que eles conquistaram na cidade também não lhes pertencia e, pela terceira vez, foi abandonado.

Com o fim do milagre econômico brasileiro e a política cambiante e insegura dos anos 60, os descendentes de italianos questionaram sua brasilidade. O cenário que seguiu durante os próximos anos ajudou a desmontar os projetos de futuro de muitos brasileiros, principalmente dos descendentes de italianos.

A vida em Santa Maria não representava mais a semelhança; ao contrário, evidenciava as diferenças. A saída encontrada por esses ítalo-gaúchos foi resgatar o passado, não como colonos, mas como doutores. A Universidade Federal de Santa Maria formou muitos filhos e netos de italianos, que trataram de multiplicar nas estantes das bibliotecas, as biografias de seus antepassados. Livros, palestras, encontros, festas de família, centro genealógico e museus foram algumas iniciativas que esses italianos tomaram para controlar o tempo e produzir novas realidades.

A comemoração dos 100 anos de imigração dos italianos para a região de Santa Maria foi o marco determinante para mostrar a todos que o colono imigrante italiano é um vencedor. É, não foi, porque são os italianos de hoje que vivem as glórias e os sucessos da imigração através da memória narrada:

como seria possível uma memória, e não a propósito paradoxal pretender conservar o passado dentro do presente, ou introduzir o presente no passado, se não pode haver duas zonas de um mesmo domínio, e se o grupo, à medida em que penetra em si mesmo, em que toma consciência de si ao lembrar-se e que se isola dos demais, não tenderia a se fechar em um forma relativamente imóvel?

Sem dúvida, ele está sob a ação de uma ilusão quando crê que as analogias sobrepujam as diferenças, porém lhe é impossível dar-se conta disso, uma vez que a imagem que fazia de si mesmo outrora, transformou-se lentamente (HALBWACHS, 1990:88/89).

O tempo da experiência e o da ficção se confundem; os descendentes de italianos reúnem uma história fragmentada, feita de restos, de lembranças entrecortadas e recontadas e que reconstituem a memória de hoje. Há um crescimento vertiginoso em busca da memória em toda a sociedade contemporânea.

O aumento e a expansão das pesquisas históricas, o turismo rumo ao passado e o aparato midiático com novelas, seriados, filmes, documentários, exposições fotográficas e programas de rádio, colocam a memória como ponte para a reconstrução do presente.

Enquanto o grupo não muda sensivelmente, o tempo que sua memória abrange pode se alongar: é sempre um meio contínuo, que se torna acessível em toda a sua extensão. É quando se transforma que um novo tempo começa para ele e que sua atenção, se afasta progressivamente daquilo que foi, e do que não é mais agora.(HALBWACHS, 1990:123).

Os grupos empenhados em reavivar a memória, em fazer presente cenas do passado, convivem com o perigo da amnésia. Se, por um lado, os dispositivos de memória são acionados continuamente, esquecem-se de que as experiências não são suas, que as recordações não lhes pertencem e que as suas histórias são fabricadas a partir de uma bricolagem, de uma mistura de acontecimentos que se deslocam do momento atual.

As minorias culturais imigrantes experimentam a fabricação do presente que implica a ausência de um futuro. E, muito mais do que a perda do futuro, os imigrantes e seus descendentes negociam suas identidades em meio à febre de memória.

As histórias contadas na Quarta Colônia são muitas, tanto quanto seus povoadores e sucessores. Assim, fragmentos de discursos são repetidos diariamente, pelo mais simples ao mais erudito filho da região.

As narrativas são instâncias que revelam aspectos da moral, dos valores identitários e do poder dominante entre os descendentes de italianos. São histórias que garantem a trajetória social de uma sociedade que não evoluiu como as outras comunidades de imigrantes italianos no Rio Grande do Sul.

Na Quarta Colônia, há uma urgência em criar e manter vínculos com um passado fragmentado, reencontrado em algumas histórias e fios de lembranças dos mais velhos e dos mais influentes. O recorte das histórias da Quarta Colônia mostra um Brasil que negocia seus discursos em favor de uma história social, cultural e identitária.

A narrativa homogeneizante e hegemônica da identidade nacional mobilizada durante os regimes totalitários, não resiste aos movimentos sociais protagonizados por atores que representam as minorias. Junto aos negros, mulheres e homossexuais, podemos incluir os colonos que tiveram sua identidade étnica sufocada pelos aparelhos do estado.

Não foi possível ao descendente de imigrante italiano ultrapassar naturalmente os limites da sua identidade transitória.

No discurso da memória são representadas as estruturas locais, regionais e nacionais que indicam o poder ideológico que está em jogo. De acordo com o objetivo do grupo que está ganhando, as regras mudam, e o universo discursivo da memória ocupa outros espaços e outros tempos.

Se a memória coletiva tira sua força e sua duração do fato de ter por suporte um conjunto de homens, não obstante eles são indivíduos que se lembram, enquanto membros do grupo. Dessa massa de lembranças comuns, e que se apóiam uma sobre a outra, não são as mesmas que aparecerão com mais intensidade para cada um deles. Diríamos voluntariamente que cada memória individual é muda conforme o lugar que ali ocupo, e que se este lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho com outros meios.

Não é de admirar que, do instrumento comum, nem todos aproveitam do mesmo modo. Todavia quando tentamos explicar essa diversidade, voltamos sempre a uma combinação de influências que são, todas, de natureza social (HALBWACHS,1990:51).

Diante da ação da memória, portanto, a minoria passa por uma experiência transformadora. A articulação de dispositivos midiáticos possibilita acionar elos entre o território simbólico e o tempo da ação. A posição de imigrante e colono na Quarta Colônia é pré-requisito para ultrapassar as barreiras da exclusão social quando da comemoração dos 130 anos de imigração, por exemplo.

A articulação midiática serve de estratégia para as entradas e saídas do lugar de minoria. Ela possibilita a legitimação do caráter minoritário e da posição cultural do descendente de imigrante.

A minoria imigrante que chegou ao Brasil em meados do século XIX, ao utilizar a mídia como instrumento de luta política, transforma-se em maioria cultural no século XXI. As ambivalências do processo de construção das identidades individuais e coletivas proliferaram no cotidiano de sujeitos que organizaram os significados circulantes na
Quarta Colônia de Imigração Italiana.

O sujeito social pertencente a um grupo minoritário, passou a ser um negociador no campo midiático. Os meios de comunicação disputam os sentidos de totalidade identitária na região de imigração italiana primeiro, como incentivador da recuperação e da preservação das histórias de vida: a mídia contribui para aflorar o desejo da italianidade. Descobrir-se italiano e divulgar suas biografias é o passo inicial para participar do contexto simbólico.

Depois, para delegar autoridade a agentes culturais e a guardiões da memória italiana que fazem da mídia um instrumento significante dos sentidos que circulam na região da Quarta Colônia. O fazer-se italiano depende do grau de interação com o meio de comunicação e, principalmente, da intimidade com o passado e da capacidade de transformá-lo em presente.

A mídia é o instrumento socializador mais eficiente da pós- modernidade. Através dela, as minorias culturais convivem com diferentes discursos e reconstroem outros tantos. Para ela foi delegada a autoridade transformadora das minorias imigrantes.

Portanto, os limites da experiência minoritária pressupõem que, através das identidades culturais construídas pelos imigrantes e pela ação dos meios de comunicação, as ofertas sócio-políticas são revisitadas por um grupo hegemônico.

O espaço da Quarta Colônia passa a ser esse lugar real e fictício que mobiliza cenas culturais. No discurso do descendente de italianos há uma negociação das experiências identitárias que o faz ser dois ao mesmo tempo: minoria cultural e hegemonia política.

Assim, não existe o desejo de retorno ao território italiano. O deslocamento espaço-temporal é realizado através dos dispositivos simbólicos construídos no ambiente brasileiro. Assim, há também uma inquietude e um estranhamento no ficar e ocupar a dupla posição transitória: a da minoria, relegada pela condição histórico-cultural, e a do poder, adquirida pelo acionamento do sistema midiático e das práticas políticas.

A mutabilidade acompanha o descendente de italianos que faz do lugar ocupado um espaço estrangeiro. Na apresentação de seu livro, Pe. Busanello resume de forma poética e profética a condição de minoria dos imigrantes italianos e seus descendentes da Quarta Colônia:

vindo de tão longe, conquistaram o interior deserto do país, dum modo bem diferente, por exemplo, dos bandeirantes. Estes entraram no sertão com lanças e bacamartes a tiracolo, prendendo, matando, levando seres humanos ao cativeiro, por cima de rios de sangue. Enfim, espalhando a morte por toda a parte. Os nossos empunhavam enxadas, o cabo do machado e a rabiça do arado rasgaram ao ventre da terra; e, porejando rios de suor, fizeram brotar a vida por toda a parte. – Bravos! Vossa memória será sempre abençoada. (1999:06)

*Doutora em Comunicação e Cultura / ECO/ UFRJ. elimortari@unifra.br;
Professora adjunta do Centro Universitário Franciscano/RS

Esse Trabalho foi apresentado ao NP13 – Comunicação e Cultura das Minorias, do V Encontro dos Núcleos de Pesquisa da  Intercom.

Referências Bibliográficas

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