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A Nova Mona Lisa – Parte 2

O herdeiro

A elucidação a respeito da identidade desta juvenil Maria no desenho de Londres poderia vir comparando-a ao retrato de uma Lisa também moça. Num exercício de engenharia reversa, de forma intuitiva, peguemos a “Jovem Dama com Casaco de Pele”. Entretanto, os ângulos díspares onde as cabeças da personagem se mostram tornam difíceis as necessárias comparações. Mas nem tudo está perdido: é através da não tão famosa obra de um de seus melhores alunos que o esboço de uma resposta possa nos recompensar. Estou me referindo a Francesco Melzi. Infelizmente, pouco sabemos a respeito deste que foi um grande companheiro de Leonardo, mas a confiança que este último dispensava ao rapaz de nobre origem milanesa foi capaz de lhe transmitir seus desenhos – incluindo os estudos anatômicos –, esboços, a maior parte de suas pinturas, além de um rico legado de escritos. Se hoje sabemos algo sobre Da Vinci, com certeza em muito se deve a Melzi, o qual proveu os maiores biógrafos do artista com montes de informações. Portanto, podemos ter em mente que Melzi mesmo tomaria a questão da anatomia como algo de importância maior em sua arte... justamente como seu mestre sempre defendera. 

E foi com tais cuidados que este último companheiro de Leonardo executou um “Vertuno e Pomona”, por volta de 1520, hoje na Gemäldegalerie de Berlim. A pintura nos recorda Pomona, deusa grega das estações - especialmente do Outono - e protetora dos pomares, assim como o deus Vertuno, que podia se metamorfosear no que quisesse. Certo dia, já cansado da constante indiferença de Pomona, o deus decide se transformar numa mulher idosa no intuito de se aproximar da desejada e, por intermédio de suas palavras, aconselhá-la a se unir a si mesmo... e assim ela o faz. Interessante que, mais uma vez, por escolha de Melzi, nos deparamos com aquela iconografia dos opostos no fato de ter escolhido representar o deus como uma idosa. Também digno de menção é o fato dos argumentos desta se basearem na necessidade que todas as coisas têm de se unir a algo “oposto” para que se lhe tenha razão de ser – daí, o imperativo de Pomona em se casar com Vertuno, um belo rapaz. Seguindo Heráclito, concluímos a juventude de Vertuno em nada valer caso o mesmo não assumisse a essência de alguém com muito mais idade, pelo viés da sabedoria que só vem com a maturidade e a experiência.

Na pintura de Melzi é óbvia a inspiração usada para a figura de Pomona: ela é a Virgem Maria do cartone de Leonardo. Naquele mesmo ano, outro notório pupilo de Da Vinci, Bernardino Luini, também aproveitaria os modelos do desenho para uma Sagrada Família (Biblioteca Ambrosiana de Milão). Neste período (entre 1517 e 1521) Melzi mais uma vez recorre à imagem do rosto no desenho para um próximo esquema: o tema agora é Flora, a deusa da Primavera. As pinturas que daí seriam geradas também se nomeariam como “Columbina”, uma referência à flor erguida pela personagem, onde Flora é associada à morte e, subsequentemente, ao renascer... ao que novamente nos deparamos com o equilíbrio de forças proposto por Heráclito. Na verdade, existem duas versões de maior qualidade técnica que chegaram até nós: uma, no Hermitage, em S.Petersburgo, e outra, no Virginia Museum of Fine Arts, Estados Unidos. Esta última, uma “confissão de filiação” à “Jovem Dama”. À época, Melzi também elaborou uma versão para Flora em pose ligeiramente distinta (Galleria Borghese, Roma), lembrando mais a de “Gioconda”; porém, com uma pequena diferença nos arranjos e indumentária, mas que saltava à vista a semelhança facial entre ambas. Em 1525, Luini executaria um “Ritratto di Donna”, totalmente sugado desta última Flora de Melzi – porém, uma pintura melhor cuidada, onde se pode tecer uma inevitável comparação com o retrato de uma Lisa mais jovem. 

Também recorro a mais uma evidência sobre esta predileção de Francesco Melzi sobre a adolescente Lisa para a criação de suas personagens femininas entre a adolescência e o início dos trinta anos: “Prosérpina e Plutão”. Esta obra é quase certo ter sido executada por algum de seus seguidores, e foi leiloada pela Sotheby’s de Nova York em 2007. Aí, a deusa do “renascer” é mais uma adaptação da figura de Colombina. Aí também o ângulo da cabeça desta personagem melhor se encaixa à da “Jovem Dama”, o quê nos revela uma similaridade facial entre as duas, apesar das limitações figurativas deste aprendiz de Melzi.

O curioso é que, graças a esta sequência lógica, a partir do original no desenho de Leonardo, finalmente, podemos comparar o rosto da modelo de Pomona no mesmo ângulo do da Virgem no cartone. Diante de tudo isto, a única conclusão a que se pode chegar é que a inspiração vinda de “Jovem Dama” é inegável ainda que com qualidade muito inferior – afinal, estamos falando aqui de Da Vinci no ápice da genialidade versus um pintor que passaria à História justamente por sua aproximação com o primeiro.

Identidade revelada

Ainda a respeito da Flora do Hermitage, há um episódio relacionado ao surgimento de um busto em cera da deusa, e atribuído a Leonardo no início do século XIX. Aquela peça em muito lembrava outro trabalho da escola romana do século XVIII, parte da Coleção Pontow (Mannheim), com a diferença da primeira aparentar bem mais antiga.

O busto de Flora: atribuição a Da Vinci ainda é objeto de muita polêmica.

Ela havia sido encontrada em 1907 num antiquário de Murray Marx, Londres, pelo cientista da Arte alemão, o Dr.Max J.Friedländer, convencido de seu valor graças à qualidade e ao aparente desgaste da peça – indicando se tratar de uma antiguidade. Daí, o caminho para a glória foi curto: adquirido pelo Kaiser-Friedrich Museum (Museus Estatais de Berlim), e prontamente autenticado pelo renomado diretor Wilhelm von Bode, célebre crítico de Arte. Mais tarde, descobriu se tratar de uma fraude executada pelo escultor Richard Kockl Lucas, denunciada pelo próprio filho após sua morte. O “The Times”, inclusive, já havia resolvido apresentar a escultura ao mundo como um embuste naquele mesmo ano. Ainda que uma falsificação, o busto – como posteriormente confirmado pelo filho de Lucas, já com 80 anos -, teve como modelo a viçosa Flora de Melzi. A própria posição dos braços (parcialmente mutilados) na escultura segue, para cada um, a mesma pose (e inclinação) em cada uma das três versões (S.Petersburgo, Roma e Mannheim) – de fato, tais gestuais se colocam dentro de um modelo leonardesco. E, em uma ligeira comparação dos rostos destas esculturas (ou seja, extraídos de Melzi e inspirados no cartone) em mesmo ângulo da “Jovem Dama”, nos mostra claramente terem saído da mesma modelo: Logo, a Virgem no desenho da National Gallery é, pois, Lisa Gherardini adolescente. 

(continua).

O Prof.Átila Soares da Costa Filho é designer, especialista em História, Antropologia e Filosofia e autor de A JOVEM MONA LISA, LEONARDO E O SUDÁRIO e co-autor de LEONARDO DA VINCI’s MONA LISA: New Perspectives. 

BIBLIOGRAFIA

Umberto Eco: “Arte e beleza na estética medieval” - Globo, 1989
Umberto Eco: “Storia della brutezza” - Bompiani, 2007
Mario Pomilio, Angela Ottino della Chiesa: “L’opera completa di Leonardo pittore” - Classici dell’arte, vol.12 - Rizzoli, 1978
Giorgio De Santillana: “Leonardo da Vinci: an Artabras Book” - Reynal & Co. e William Morrow & Co., 1965
Giorgio Vasari: “Vidas de pintores, escultores y arquitectos ilustres” - El Ateneo, 1945
Jean-Pierre Vernant: “As origens do pensamento grego - Difel, 2002
Silvano Vinceti: “Leonardo, la misteriosa dama con pelliccia” em https://www.invisibileinarte.it/news2/53-leonardo-la-misteriosa-dama-con-pelliccia , 04 de fevereiro de 2019.