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As rosas e o caderno

No início do ano, a comunidade acadêmica da Bahia registrou, pesarosa, o falecimento do intelectual italiano Giorgio Baratta, considerado um amigo da Universidade Federal do Estado, laços iniciados quando esteve da instituição para proferir uma palestra sobre Gramsci, seu grande objeto de estudos.

A partir daí, negociou pessoalmente o projeto TRÂNSITO ATLÂNTICO, uma parceria da UFBA com a Universidade de Nápoles L’Orientale que, durante 2003 e 2007, resultou em diversos eventos culturais com artistas brasileiros na Itália e com italianos na Bahia, além de alunos das duas universidades. Destes eventos participaram, entre outros, Caetano Velloso e a cantora de jazz italiana Maria Pia de Vitto.

Baratta foi também um dos fundadores do IGS (International Gramsci Society) e do IGS-Itália, ocupando o cargo de presidência deste último. Foi fundador e presidente do Immaginare l'Europa e do Terra Gramsci. Também foi professor de filosofia da Universidade de Urbino, da Universidade de Nápoles L’Orientale e ficou conhecido pela contribuição com os estudos sobre o pensamento de Antonio Gramsci, tornando-se um especialista eminente da área. Entre seus livros, destaque para Le Rose e i quaderni (Roma: Gamberetti, 2000) e Antonio Gramsci in contrappunto (Roma: Carocci, 2007).

A Instituição, em sua homenagem, divulgou um texto de sua autoria:

As rosas e os cadernos
O século breve

Entre 1919 e 1989, entre a “utopia revolucionária” do Ordine Nuovo e a “revolução passiva” da Nova Ordem Mundial, encerra-se a história agitada e contraditória do século que vai embora. Vão-se também projetos, esperanças, ilusões, entusiasmos, compromissos, heroísmos, consciência crítica, historicismo, comunismo.

Antonio Gramsci escrevia em 1929: “O velho morre e o novo não pode nascer.” Estava claro para ele o que seria e deveria ser o novo, que despontava como algo confuso no horizonte, mas que ainda não existia e nunca haveria de existir. Para nós, o novo já é o presente, com sua velocidade de inovação, destruição, invenção, com sua ausência de futuro, sua frieza tecnológica. A obsolescência quase imediata tanto das produções como das idéias é de tal monta que, olhando para as potencialidades não realizadas, quase congeladas, do socialismo, o mote poderia paradoxalmente soar assim: “O novo morre e o velho não pode nascer.”

A cidade futura

Hoje, pensar junto com Gramsci significa não resignar-se, resistir, manter viva a contradição entre 1919 e 1989, entre passado e presente, realidade e imaginação; significa reconquistar um olhar sobre o futuro, sem mitologias nem nostalgias, com a certeza de que o sonho foi sonhado, der Traum ist ausgetraumt, mas também com a vontade e capacidade de manter vivos os rastros daquele sonho, que foi — como qualquer sonho — a realização simbólica de um desejo concreto, uma necessidade real, uma tendência do existente. O fato é que, passada a época de Yalta e do socialismo, primeiro num “só” país, depois cinzentamente “real” — quando o capitalismo volta a marchar no mundo como um tanque de exército, queimando terras ainda virgens ou ricas de tradições —, o cenário internacional, na passagem “entre um século e outro”, parece reproduzir intensamente o clima de há cem anos: a arrogância tecnocrática e positivista é novamente a máscara através do qual se anuncia e se afirma brutalmente o direito do mais forte. Ontem como hoje, o progresso é portador de seu contrário e anuncia retrocessos espantosos, mas também joga para frente as contradições da vida social. A crítica social aguça suas armas. Análise objetiva do real e imaginação cognitiva, juntas, põem em discussão o existente, produzem a visão do possível.

Antonio Gramsci pensou e agiu não por força de uma fé, mas de uma paixão racional. Já que o mundo do comunismo nada mais é do que o mundo do capital, que associa coisas e indivíduos, povos e culturas, o eco daquela paixão e razão, a recordação daquele sonho obrigam a mente a se aventurar em um possível que terá outros nomes e características, mas extrai vida e alimento daquele mundo antigo e ainda novo.

A sagrada sobriedade

Die heilige Nüchternheit é um ideal holderliniano que atravessa de ponta a ponta os Cadernos. É admirável quantos espaços extraordinários abre, linha por linha, aquela “pena de escrever que arranha”, tão impregnada de mofo carcerário. Limitações e isolamento dão asas ao pensamento. O vôo é desprovido de ênfase. O horizonte temático é o mundo/universo reconduzido a momentos particulares, fatos e pequenos fatos, situações e territórios, problemas que surgem, embriões de idéias, categorias audazes e penetrantes, que se concatenam organicamente sem nunca se tornar sistema e oferecem-se despidos de enfeites à prova da experiência. O contexto é constitutivamente interdisciplinar, ou melhor, adisciplinar; não conhece limites e termos já determinados nem axiomas ou definições básicas. A materialidade dos Cadernos é expressão de uma forma original de pensamento que pode desenhar-se de modos diferentes, como uma estrutura em espiral ou como um retículo ou labirinto... é uma filosofia-criança que está aprendendo a caminhar e, por esta razão, precisa ser ajudada a existir e desenvolver-se, mas também ser considerada por aquilo que é, frágil em sua grandeza, inacabada em sua originalidade e fertilidade.

O estudo e o uso

Com poucas exceções, o enorme sucesso do pensamento de Gramsci representou uma traição sistemática de seu estilo sóbrio e comedido, de seu ritmo lento e cadenciado, de sua argúcia incisiva e sutil. Existem razões profundas para esta traição, que se concretizam no destino simultaneamente perverso e fascinante, enraizado nas qualidades peculiaríssimas do personagem; o qual conheceu, primeiro, a exclusão, a condenação, o silêncio, por parte de seus companheiros, depois, as celebrações e los usos, que podem ser muito nobres, mas podem também traduzir-se no afã de sempre buscar em sua obra algo a mais, ou diferente, do que ele tinha pensado e escrito, dentro da estratégia e da tática de adaptá-lo aos propósitos de cada um [1].

Por um lado, é precisamente isso que seus escritos, tanto políticos e jornalísticos como epistolares e teóricos, pedem: um interlocutor vivo, que apreenda a idéia e siga em frente, que assuma uma atitude não somente filológica e crítica, mas projetual e herética. Por outro lado, Gramsci nos advertiu, com suas anotações pormenorizadas sobre o modo de ler Marx — um autor que lhe é afim, por causa do movimento perpétuo e do caráter não-sistemático nem puramente teórico do seu pensamento —, a exercer o máximo de escrúpulo e de honestidade científica, a não “forçar” nunca os textos. Ambivalências

Não é fácil combinar, de maneira equilibrada e produtiva, filologia e política, o estudo e o uso. Também pode acontecer que estes dois aspectos se fundam entre si. Esta, talvez, é a novidade mais importante de certa literatura recente: através do estudo paciente, quase uma escavação, principalmente no sentido genético e diacrônico, da edição crítica dos Cadernos e, em geral, de toda a obra de Gramsci, esta literatura assume o “estilo” e “ritmo” de seu pensamento não somente como objeto mas como método de estudo. Não se trata, neste caso, de tentar uma modernização de suas categorias, mas de percorrê-las novamente em sua dinâmica interna ou de torná-las disponíveis como fermentos para uma análise do existente.

Há também uma história inteiramente política da leitura dos textos e da interpretação do significado e uso de certas categorias. Tome-se o conceito de “hegemonia” e “luta hegemônica”: houve, e ainda há, uma verdadeira “luta hegemônica” sobre o modo de entender a hegemonia. Penso, por exemplo, nos socialistas italianos, que, nos anos 70, para combater o avanço do comunismo e a influência gramsciana que se manifestava (embora pela última vez) na cultura italiana, propuseram-se demonstrar e convencer que o próprio conceito de “hegemonia” teria um caráter antidemocrático, confundindo intencionalmente “hegemonia” com o sentido corrente de “hegemonismo”.

Considerações parecidas podem ser feitas a propósito do conceito, bastante ligado ao anterior, de “sociedade civil”, que hoje revela, em particular, toda a “ambivalência” de seus “usos”. Estudiosos e homens políticos de projeção (dessa curiosa não-esquerda de hoje) utilizam e alimentam uma linha de interpretação deste conceito que induz a eliminar os conteúdos “estatais” e “públicos” da tradição socialista. Mas esta leitura “neoliberal” ou “neo-anárquica” ignora (ou prefere ignorar) um fato simples e indiscutível: o trabalho intenso, profundo, corajoso e totalmente isolado, que — em anos dominados pela luta feroz entre “estatolatrias” opostas, mas simétricas — Gramsci desenvolveu com generosidade, ao repensar o conceito de Estado e sociedade civil, fundando aquele seu particularíssimo conceito de “Estado ampliado” (tanto antiliberal quanto antitotalitário), no qual se reinseria a própria “sociedade civil” como momento e articulação fundamental [2]. Este novo conceito de Estado é que o leva a retornar de maneira nova, crítica e construtiva, às origens do socialismo. Filologia viva

Considero que a “luta hegemônica” em torno da leitura de Gramsci exige hoje uma certa suspensão das motivações mais diretamente ideológicas. Mesmo odiando academicismos e filologismos, Gramsci dava grande importância à filologia, entendida, em nível muito geral, como “expressão metodológica da importância dos fatos particulares”. Ele formulou o conceito de “filologia viva”, cuja importância salientava não somente em relação ao estudo dos textos mas também da vida social e política, da própria concepção de partido. O método da “filologia viva” pressupõe o vaivém do empírico e do individual ao universal e ao total, e vice-versa — sem nunca fechar o círculo ou chegar a uma conclusão definitiva ou definidora —, e isso como idéia-guia na ciência e na política, na teoria e na prática, nas dimensões da pesquisa abstrata e da análise concreta. “Cada raio passa por diversos prismas e produz diferentes refrações de luz [...].

Encontrar a identidade real sob a diferenciação e contradição aparentes, e encontrar a diversidade substancial sob a identidade aparente é o dom mais delicado, incompreendido, mas essencial, do crítico de idéias e do historiador do desenvolvimento social.” Ler Gramsci com as lentes de Gramsci: hoje, o espírito da “filologia viva” nos convida principalmente a isso. Ler Gramsci, ler a realidade

Aqui se propõe uma tentativa de leitura e interpretação do pensamento de Gramsci: é uma tentativa de balanço e síntese de um percurso iniciado há quinze anos, feito de estudos monográficos, investigações de aspectos singulares, explorações motivadas de maneiras até muito variadas, mas que hoje, olhado em retrospectiva, parece-me atravessado por um fio condutor unitário, que os leitores identificarão imediatamente. Os estudos aqui reunidos são parte do trabalho feito neste período de tempo: metade deles ainda são inéditos e os demais foram submetidos a uma forte revisão. Na terceira parte, após alguma hesitação, também decidi publicar novamente estudos saídos recentemente (e, por esta razão, facilmente acessíveis), uma vez que indicam concretamente — pelo menos, assim espero — uma maneira possível de continuar com Gramsci.

Nestes quinze anos, “ler Gramsci” significou para mim uma surpresa permanente: a surpresa de deparar com textos extremamente ligados à vida de outra época, mas ao mesmo tempo ricos de universalidade e capazes de estimular perguntas do passado em relação às vicissitudes do presente; capazes também de promover diálogos e convergências entre “intelectuais” e “simples”, entre cultura e senso comum. As asperezas do caminho tomado estão na dificuldade objetiva da “filologia” gramsciana, que coloca obstáculos e armadilhas diferentes, mas não menos perigosos, do que os colocados pelos códices antigos e medievais. Buscou-se a bússola na “filosofia ocasional” de Gramsci, esporádica mas extremamente audaz, opaca e amiúde silenciosa, mas também fonte de clarões e sons penetrantes. A ambição é colocar no mosaico uma pedrinha bastante colorida, daquelas que o mosaico hoje precisa para continuar a despertar curiosidade e interesse.

As rosas e os cadernos

Primavera 1929: no terceiro ano de prisão, o prisioneiro- filósofo — tal como Rosa Luxemburg — cuida com carinho, no pátio da prisão, do crescimento de algumas plantinhas, cujas sementes lhe foram gentilmente oferecidas por Tania em uma de suas primeiras visitas a Turi. Então, Antonio pediu-me com insistência uma roseira-trepadeira, eu respondi que não era oportuno fazer um roseiral na cadeia, se não quisesse desfrutá-lo. Mas Antonio respondeu que sabia da necessidade de estabelecer lentamente sua existência em Turi por longos anos, portanto bem podia desejar ter uma roseira para fazê-la subir no muro, até as celas [3]. Julho 1929: após um início precário e incerto, a roseira começa a crescer.

Sabe, a roseira reavivou-se totalmente. Do dia 3 de junho até o dia 15, de repente, começou a dar botões e depois folhas, até ficar toda verde: agora, já tem pequenos ramos de 15 centímetros [...]. O ciclo das estações, ligado aos solstícios e equinócios, eu o sinto como carne de minha carne: a roseira está viva e florescerá certamente, porque o calor prepara o gelo e, sob a neve, já palpitam as primeiras violetas, etc., etc.; enfim, o tempo me parece uma coisa corpórea, uma vez que o espaço não existe mais para mim. A roseira é um convite à vida e, ao mesmo tempo, para Gramsci, uma metáfora do mundo grande e terrível. Ele estava experimentando, de modo totalmente particular, a inexorabilidade do tempo, os efeitos do devir e do desaparecer das coisas. Não é só o ciclo das estações que é “carne de sua carne”: também o é a história dramática dos seres humanos, vivida como natureza, como corpo, como parte de si, e da qual ele mesmo é parte. O coração do tempo corpóreo pulsa e dá vida, junto com a roseira, a uma torrente de cadernos, que arrasta consigo materiais de todo tipo, tudo aquilo que o acaso e a necessidade permitem encontrar nos longos anos de silêncio carcerário.

Os cadernos têm um caráter intimamente fragmentário: neles, nada é conclusivo e concludente, tudo é problemático. São a expressão cristalina e fluente de um pensamento em estado de nascimento, de um continuum, um organismo em movimento que cresce sob os olhos. ----------

Giorgio Baratta era professor da Universidade de Urbino, na Itália. Originalmente publicado como introdução a seu livro Le rose e i quaderni. Saggio sul pensiero di Antonio Gramsci (Roma: Gamberetti, 2000). ---------

Notas [1] Cf. Juan Carlos Portantiero. Los usos de Gramsci. Buenos Aires: Grijalbo, 1999.

[2] Cf. Domenico Losurdo. Gramsci dal liberalismo al “comunismo critico”. Roma: Gamberetti, 1997, cap. V; Carlos Nelson Coutinho. Gramsci. Um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, cap. V; Guido Liguori. “Stato e società civile da Marx a Gramsci”. In: VV.AA. Marx e Gramsci. Textos do encontro internacional realizado em Trieste, em 20-21 de março de 1999, em curso de publicação pela Ed. Gamberetti, de Roma.

[3] Tania Schucht. “I colloqui che ho avuto”. In A. Gramsci & T. Schucht. Lettere 1926-1935. Org. por A. Natoli e C. Daniele. Turim: Einaudi, 1997, p. 1438.

Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil/UFBA