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Mona Lisa sob suspeita

Que a fama pode cobrar um preço demasiado caro, isso é mais que inegável. E, em se tratando daquela que é a obra construída por mãos humanas mais celebrada e popular da História, o fenômeno se lhe cai quase como uma maldição. Assim, seguindo a tradição vem se desenrolando desde antes que pudesse ser finalizada, há cinco séculos, a Mona Lisa continua (e como!!..) a render bastante polêmica, inaugurando sua vertente cibernética. 

No final de 2016, eis que aparece um estudo assinado pelo publicitário e blogueiro americano Taylor Kinahan, intitulado “Cracking The Da Vinci Code: Why Raphael Is the Artist Behind The 'Isleworth Mona Lisa'” (ou “Quebrando o Código Da Vinci: Porque Rafael é o autor por trás da ‘Mona Lisa de Isleworth’”). Kinahan, um jovem autor dedicado às artes visuais, nos dá a impressão daquela história do arqueiro que primeiro atirou uma flecha numa parede branca e, somente aí, começou a pintar o alvo em torno da seta fincada. Ainda que profundo e cheio de detalhes, o texto parece, por alguma razão, fazer imperar sua imensa vontade em ter na figura de Rafael Sanzio (assim como Leonardo, outro gigante da Renascença italiana) o verdadeiro autor da versão mais resplandecente da Gioconda de Da Vinci, a Mona Lisa de Isleworth. E isto, Kinahan fará, custe o que custar para, em seguida, anunciar a morte de um grande “mistério de 500 anos”. Ao que parece, o mesmo, simplesmente, decidiu ignorar um enorme volume de informações e resultados de pesquisas sérias – e ele reconhece tal seriedade - em favor da autoria de Leonardo, para repassá-la a Rafael via um punhado de análises superficiais e conjecturas, de certa forma, redundantes. Assim, escolhe-se organizar em tópicos as considerações mais significantes sobre algumas de suas principais reivindicações, a seguir:

1) Percebem-se padrões faciais assinados por Rafael que já foram usados em retratos de Leonardo.

O fato de alguns rostos em desenhos e pinturas de Rafael (1483–1520) se assemelharem e se encaixarem antropometricamente naqueles executados por Leonardo em nada surpreende caso se queira, com isso, provar ser o primeiro o verdadeiro autor. É muito conhecido e documentado que o artista de Urbino em muito se baseou na arte e nos esquemas – desenhos em carvão sobre folhas denominadas cartone - criados por Da Vinci, tanto para retratos quanto para cenas (vide as várias versões de Rafael para a “Sagrada Família”). A questão aqui é: dentre Leonardo e Rafael, qual dos dois criou e desenvolveu o formato e técnica que se vê na Mona Lisa de Isleworth? Ora, não há nada que indique uma sobrepujança no sentido contrário. Logo, o simples fato de haver semelhanças entre obras de ambos os artistas, não traz nenhuma novidade a nosso cenário.

Ademais, um desenho de Rafael como aquele que o autor do estudo mostra, Cabeça de Jovem, datando de antes à Mona Lisa de Isleworth, por si só, não prova absolutamente nada. Leonardo não era, necessariamente, um excelente cronista para cada pintura que executasse. A própria Gioconda carecia de título, de assinatura ou de qualquer referencia escrita por parte de seu autor. Nada impede que o se vê neste desenho de Rafael, na verdade, já fosse de pleno domínio em Leonardo.

2) A relação de Jovem Dama com um Unicórnio com Mona Lisa de Isleworth.

Uma destas pinturas de Rafael, largamente usada ao longo do texto a fim de sustentar a teoria de Kinahan, aqui intitulada Jovem Dama com um Unicórnio, é claramente aquela tradicionalmente identificada como o retrato de Giulia Farnese, a amante de Rodrigo Borgia – o Papa Alexandre VI -, aos 17 anos de idade. Logo, um pretenso vínculo de antropometria facial entre esta e a personagem de “Isleworth”, Lisa Gherardini, torna-se algo automaticamente desconexo. O próprio esboço de Rafael para Jovem Dama em um balcão, com base na Mona Lisa, em absolutamente nada se assemelha com as feições desta mulher. Logo, afinal, não haveria tanta analogia assim entre a arte de Rafael e esta pintura, na verdade.

3) A tradição dos antigos.

Eventualmente, o fato de se achar um desenho de Rafael que pudesse servir de cartone para alguma obra de Da Vinci, em razão de grande número de pontos-âncora entre um e outro, não significa que necessariamente assim tivesse ocorrido. Isto se deve, na verdade, a um bem cultivado senso de respeito por parte daqueles pintores às normas e padrões renascentistas com base na Matemática da Harmonia de Pitágoras e Vitrúvio, de Fídias e Fibonacci, a fim de que se emprestasse maiores beleza e elegância àquela figura. Evidente que, as imagens de uma gama de artistas, rezando do mesmo credo, haveriam de se assemelhar muito entre si, em um nível matemático quase perfeito.

4) Os dados de Vasari.

Tomar os dados do cronista Giorgio Vasari (também artista e contemporâneo de Rafael e Da Vinci) como elementos historicamente confiáveis para se criar uma cronologia viável onde as reivindicações do publicitário entrem em sincronia de causa-efeito é tarefa perigosa. À época de Rafael e Leonardo, a atividade de biógrafo - ainda que importante como base atual para o desenvolvimento de estudos sócio-historicos – fugia em muito do rigor e critério que, mesmo hoje em dia, ainda podem se sentir ausentes. Já se detectou nos textos de Giorgio Vasari alguns pontos de manifestações denotando romantismos e tendência pessoais.

5) O crânio da Gioconda.

Sobre o alegado volume “excedente” na parte posterior do crânio da Mona Lisa no desenho de Rafael (no Louvre), e presente na Gioconda de Leonardo (também no Louvre), o autor da matéria sugere que aquela fração da cabeça na Mona Lisa de Leonardo (Louvre) não deveria ser um véu, e a tendência seria que fosse apagada, coberta pelo artista. Seu principal argumento baseia-se numa foto da duquesa Kate Middleton portando um véu branco com todas as suas peculiaridades de luz e sombra. Estranhamente, o articulista do blog usa um exemplo diferente daquele que se vê na pintura de Da Vinci, que porta um véu negro. Segundo Kinahan, entretanto, o comportamento do efeito luminoso no véu da duquesa é claramente diverso daquele que Leonardo nos apresenta na Gioconda, bem mais fosco... ou seja, mais uma vez, nenhuma surpresa aqui. Ademais, vale ressaltar que a Mona Lisa de Da Vinci nunca foi uma obra que pretendesse lecionar as leis da Física - do contrário: este quadro se ancora em valores completamente filosóficos e metafísicos. Mona Lisa de Leonardo é puro discurso simbólico, e nada temporal, natural ou material. 

6) O véu da Gioconda.

A Gioconda de Leonardo porta, sim, um véu sobre sua cabeça – e isto foi um recurso totalmente proposital, e não há absolutamente nada que indique o contrário. Inclusive, especialistas em História da Moda até identificaram quê tipo de indumentária a modelo usava: moda espanhola do século XV, denominada “de maja” – um figurino de forte valor e significado sociológico, marcando a liberação sexual da mulher às portas da Modernidade, assim como a classificando no status de independência financeira.    

7) As cores de Rafael e a marca registrada de Leonardo.

A primeira providência a ser tomada por Kinahan, ao fazer a análise cromática da versão jovem da Mona Lisa teria que ser, necessariamente, ter visto a obra pessoalmente. E fica no ar a dúvida: será que isto, de fato, ocorreu em algum momento? Para quem já teve a experiência, entende perfeitamente que, “ao vivo”, a pintura ressalta aos olhos em diversos aspectos: suas cores se avivam na mesma tendência azulada de Virgem dos Rochedos, por exemplo. O rosto da modelo, de fato, parece ter vida própria – a exemplo do que os contemporâneos de Leonardo comentavam à época de sua realização. 

Outro detalhe importantíssimo: o clássico “sorriso da Mona Lisa” – sem dúvida, a maior marca registrada do artista – é magistralmente presente nesta Mona Lisa de Isleworth. Em nenhuma pintura de Rafael se vê algo sequer parecido em tantas representações de Madonas, ou de retratos de personagens contemporâneos seus. Então, resta a pergunta: Rafael, em toda sua vida, o teria executado somente uma única vez? E logo em uma versão daquela que viria a ser a pintura mais célebre - não dele, mas de outro pintor: Leonardo? Nada disso faz o menor sentido. Enfim, “Isleworth” parece, transparece, respira e exala a alma e o talento de Da Vinci.

8) Duelo de Giocondas.

Kinahan, em um determinado momento, decide, então, abrir um confronto entre as duas versões para justificar a razão de ser daquela que está no Louvre – e por que é do jeito que é. Segundo ele, teria sido pintada “de memória”, a fim de que Leonardo não se sentisse “diminuído” frente à execução de Mona Lisa de Isleworth por Rafael. Parece, então, que o blogueiro esqueceu-se - ou ignorou – o fato de tudo ali, na versão do Louvre, provar por si mesmo que foi totalmente proposital – do contrário de sua insinuação sugerindo algo menos responsável. Análises antropométricas apontam que o crânio desta Gioconda é metade masculino, metade feminino. A paisagem ao fundo, na verdade, são duas que não se encaixam. 

Conclusão.

Na verdade, o que mais surpreende em toda a história é o tamanho da insistência sobre a Mona Lisa (do Louvre) ser uma representação normal, previsível, do tipo que se espera que um artista mais limitado realizasse?.. Até quando irão virar as costas para todo o potencial de genialidade, de simbolismo e de imersão filosófica que Da Vinci quis gerar para os “olhos que sabem ver”?. A Mona Lisa de Isleworth não é uma representação erotizada de uma bela jovem, e nem a do Louvre é um esforço de memória sobre a mesma, partido de um ancião desesperado por provar seu valor. Ambos os quadros, executados pela mesma pessoa (Leonardo) se auto-complementam: são uma lição carregada de sabedoria hermética sobre o devir, a força dos opostos, os ciclos e as idades da vida.

O Prof.Átila Soares da Costa Filho é especialista em História e Antropologia e autor de A Jovem Mona Lisa e Leonardo e o Sudário, ambos pela Ed. Multifoco (Rio).

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