UIL

Balada do pistoleiro

Renovador do faroeste, italiano Sergio Leone é tema de retrospectiva no Festival do Rio

Por Inácio Araujo - Crítico da Folha de São Paulo

Aquilo parecia piada: um faroeste feito por diretor italiano, rodado na Europa, com elenco obscuro, colocava-se agora como alternativa à mais cara das tradições do cinema americano -o faroeste.

Mas foi assim que aconteceu, em 1964. Com as produções mitológicas, do tipo Maciste, em crise, a Itália começou a investir nesse tipo de faroeste, Sergio Leone optou por filmar "Por um Punhado de Dólares". Não foi apenas um grande sucesso. Foi também o momento em que toda a história do cinema começou a se mover.

Não se pode esquecer que rolava a Guerra do Vietnã, e a crença nos valores americanos -que o "western" representava mais do que qualquer outro gênero- começava a ficar abalada. O gênero agonizava. Mas o que Sergio Leone (1929-1989) propunha -e que poderá ser visto na retrospectiva ao cineasta dentro do Festival do Rio, que acontece de 23/9 a 7/ 10- era de outra ordem: filmes de baixo orçamento, feitos por alguém que crescera vendo e sonhando com faroestes.

Essa releitura do Oeste tinha particularidades capazes de embrulhar o estômago dos fãs mais tradicionais: a violência extrema, a indigência dos vilões, a descrição de um mundo desprovido de leis (em que, ao contrário do faroeste tradicional, parece que ninguém procurava impor a lei).

Em poucas palavras, com o faroeste espaguete proposto por Segio Leone surge uma metáfora poderosa da vida no Sul da Itália. O que se acreditava uma brincadeira de mau gosto se impôs como um gênero popular de primeira linha. E, em vista da crise do faroeste nos Estados Unidos, acabou mesmo por substituí-lo e garantir sua sobrevivência.
Desde o início, já se podia perceber certas características que particularizavam o cinema de Sergio Leone. Em suas mãos, a ação parecia estancar. Podia-se ver durante minutos um homem sentado, conversando com seus botões, tendo por fundo uma paisagem desértica.

Mas, quando explodia, a violência era para valer: duelos rápidos, mortais, com tiros certeiros, desferidos de forma original, sem grande compromisso com a verossimilhança. Leone não cultivava a câmera lenta que, mais tarde, consagraria Sam Peckinpah.

Quer dizer, não na hora dos duelos mortais. Existe outro tipo de duelo, em que os adversários medem forças, que rendeu uma cena antológica de "Por uns Dólares a Mais", entre Clint Eastwood e Lee van Cleef, em que, durante minutos, um atira no chapéu do outro para ver quem tem melhor arma e pontaria.

Este é outro e decisivo aspecto do faroeste leoniano: ele substitui a ação contínua dos velhos caubóis por uma mise-en-scène operística, barroca, que por sinal não deixa de lembrar os filmes de cangaço feitos por Glauber Rocha, especialmente "Deus e o Diabo na Terra do Sol".

Forte e original
O correr do tempo é decisivo, em todos os sentidos, para o cinema de Sergio Leone. Por um lado, na medida em que se sucedem, os filmes da célebre trilogia ("Por um Punhado de Dólares", 1964, "Por uns Dólares a Mais", 1965, e "Três Homens em Conflito", 1966) permitem ver um realizador forte e original. Com isso, ele acaba se impondo nos EUA e é convidado a dirigir lá mesmo a superco-produção "Era uma Vez no Oeste" (1968).

O quadro é o momento de implantação das ferrovias no Oeste, mas o cerne da questão é outro. Trata-se de uma "vendetta", mais uma, à moda siciliana. Com recursos e segurança, Leone leva o pendor operístico às últimas conseqüências. Para puxar um revólver leva-se quase um minuto.

A música de Ennio Morricone parece compreender perfeitamente o que o diretor pretende: ela se encaixa no tempo e parece fazer parte do destino mesmo das imagens.

Os tempos eram outros, é claro. O cinema ainda não era a diversão estritamente infanto-juvenil em que se transformaria a partir do fim dos anos 70. Leone existia ao lado de Antonioni.

Em um registro mais irônico e visualmente menos impressionante, sua próxima parada seria o México, palco de "Era uma Vez na Revolução", em que cria no entanto momentos antológicos. O mais célebre deles é possivelmente aquele em que James Coburn, um mercenário chegado em explosivos, abre sua capa -como um exibicionista poderia ter feito- e dá a ver seu arsenal ambulante.

A última parada registra uma ligeira mudança de rota. "Era uma Vez na América", em 1984, trata da amizade e rivalidade entre gângsteres judeus nos Estados Unidos, em um tom que associa o grandioso da representação ao lirismo da elegia.

No total, a carreira de Sergio Leone limitou-se a meros oito filmes. Na maioria deles, no entanto, o diretor italiano iluminou o cinema com um olhar original, uma força inesperada, uma convicção quase inabalável nas imagens que criava e uma vitalidade que trouxe do cinema popular e que soube restituir ao espectador. Gordo, Leone não caminhava depressa. Mas sabia muito bem aonde ia. Não é tão freqüente assim.

Cineasta foi do épico mitológico aos gângsteres

Da redação

Sergio Leone nasceu em janeiro de 1929, filho de Vincenzo Leone, pioneiro do cinema italiano famoso por seu trabalho com Francesca Bertini, a grande diva italiana do período.

Se fosse pelo pai, Sergio teria se tornado advogado. Mas aos 18 anos ele trocou os estudos pelo cinema e começou a carreira como assistente, sobretudo de filmes americanos realizados na Itália, como "Quo Vadis?" (1951) ou "Ben-Hur" (1959).

A Itália possuía uma rica tradição de espetáculos histórico-mitológicos, e foi num deles que Leone estreou na direção, sucedendo a Mario Bonnard, quando este morre durante a direção de "Os Últimos Dias de Pompéia" (1959). No ano seguinte, realizaria o primeiro filme de fato seu, "O Colosso de Rodes".

Com a decadência do gênero, começa a urdir uma releitura em faroeste do "Yojimbo" de Akira Kurosawa, que resultaria, em 1964, em "Por um Punhado de Dólares". O sucesso internacional do filme determina uma guinada em sua carreira, à parte marcar o início da parceria com o antigo colega de escola Ennio Morricone, agora compositor, e com Clint Eastwood, criando o tipo do calado pistoleiro sem nome.

Seus dois grandes épicos, "Era uma Vez no Oeste" e "Era uma Vez na América", foram mutilados e fracassaram nos EUA, tendo, em contrapartida, o reconhecimento de público e crítica na Europa, em especial na França. Leone preparava um ambicioso filme sobre o cerco a Leningrado, durante a Segunda Guerra Mundial, quando morreu, em abril de 1989, em decorrência de problemas cardíacos.