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Porto Alegre dos Imigrantes

Por Nuncia Santoro de Constantino(*)

Por grandes transformações passavam as cidades brasileiras no século XIX. Em Porto Alegre , pouco a pouco  implantavam-se padrões culturais citadinos, influenciados por  modelos  europeus. Desejava-se cenários e personagens adequados à uma nova imagem urbana, definida como moderna.

Crescera o povoado formado por açorianos. O núcleo urbano logo desenvolvera-se em função do porto fluvial, principal centro exportador de trigo. E já havia marinheiros lígures por aqui, pois eles dominavam a navegação de cabotagem em toda a América do Sul. Tanto estavam em Porto Alegre  que Magnoni batizava sua filha Rafaella em 1826, na igreja matriz .

Pouco tempo depois haveria intensa agitação na capital da Província. Os farroupilhas ocupavam a cidade , muitos italianos circulavam pelas nossas estreitas ruas e alguns até ficaram por aqui.

Assim, desde 1840 a presença de italianos aumentava. Francioni, natural de Ancona, batiza quatro filhos . Também batizam filhos o médico milanês Friziani, o genovês Carlo Favaro, Giácomo de Limoni e Salvatore Sabatoni, dos Estados Pontifícios.  Em 1845 noticia-se  falecimentos de italianos residentes na cidade e  faz-se propaganda do comércio de italianos, como é o caso do pioneiro ateliê fotográfico de Masoni.  
 
A importância mercantil da cidade crescia e o sistema ferroviário, aproximaria os  mercados no final do século. Em Porto Alegre fixou-se o principal centro industrial do Estado , com produção  equivalente à  de São Paulo. 

O transporte coletivo iniciara-se em 1878, introduzidos os bondes com tração animal. A praça da Matriz fora embelezada  com os edifícios da Câmara e do Tribunal de Júri,  junto ao Theatro São Pedro. A Companhia Telefônica, fundada com capitais rio-grandenses, inaugurava os  serviços em 1886. Iluminava-se a cidade com gás e a rua tornava-se  uma  extensão da casa mesmo à noite.
 
Falar em modernidade é apontar  formas de pensar e de viver.  A cidade moderna passou a ser entendida pelos seus bulevares, onde foi possível ver e ser visto, onde se desfrutava ambientes como cafés,  cinemas, confeitarias. Na  área central  estava o principal cenário  urbano, por onde transitaram milhares de imigrantes  italianos.

Por volta de 1870, bem antes que os contingentes de colonos ocupassem lotes no interior da Província, a presença italiana é reconhecida na cidade e algumas pessoas já se destacam , exercendo atividades comerciais ou artísticas. Amoretti tem padaria na Rua Riachuelo, Piccardo tem fábrica e loja de sombrinhas. Cavedagni é músico e empresário de espetáculos líricos, Roberti é diretor de sociedade musical, Grasseli é pintor , Fossati e Pittanti são conhecidos escultores, autores da estátua do Conde de Porto Alegre, primeiro monumento colocado na nossa via pública. Giuseppe Obino realiza sua obra de maior expressão, o conjunto alegórico representando os quatro rios que desagüam no Guaíba, estátuas femininas que  rodeavam o desaparecido chafariz da Praça da Matriz e que hoje estão na Praça Dom Sebastião, com alguns narizes e dedos decepados.

A guerra contra o Paraguai oportunizara bons negócios ao nosso comércio.  Foi estimulado   o surgimento de indústrias e fundou-se a Associação Comercial, da qual logo  farão parte os comerciantes italianos: Florio possui loja de calçados , Gianetto vende chapéús de sol, Blachi e Sesiani vendem tecidos, Ungaretti possui loja de miudezas em geral, e todos estão estabelecidos à Rua dos Andradas.
 
Porto Alegre crescera muito. Entre 1872 e 1920, a população quase quadruplicou, também como conseqüência da imigração urbana, com predominante ingresso, no período,  dos contingentes  italianos. O Cônsul Brichanteau  registra que a cidade , em 1891, possui "cerca de seis mil habitantes italianos", o que representava mais de 10% da sua população .
 
Novas formas para viver em cidades surgiam, a começar pelos passeios nas praças públicas, recém aformoseadas pelos administradores. Estrangeiros iam fundando as suas principais sociedades recreativas ; polcas e valsas substituiam os fandangos. Nos primeiros hotéis da cidade apareciam restaurantes que criavam novos hábitos, oferecendo  bebidas e cardápios importados. Antes encontrava-se apenas casas-de-pasto ou tavernas

Em 1870 só havia um café na Rua Nova. No final do século eram inúmeros cafés, como o América, o Café Roma, cujos proprietários são Antonello e Viale; os cafés  Guarani e o Colombo, dos irmãos Azzarini;  ou ainda o mesmo café da Fama, na Rua Nova, que fora adquirido por Blengini, antigo companheiro de Garibaldi. No final do século também as senhoras e senhoritas  podiam freqüentar confeitarias como a Confeitaria da Alfândega, de Francesco Carlucci, saboreando especialidades ao som da orquestra que abrilhantava as tardes porto-alegrenses.

No Centro estava o espaço para as sociabilidades. Muito antes que uma reordenação global da cidade fosse iniciada, a Rua da Praia já era o nosso principal boulevard.

Mas ainda naquela distante década de 1870, os  italianos de Porto Alegre já eram mesmo italianos, apesar de muito recente ser então o Reino d'Italia.  Acompanhavam os feitos do ressurgimento italiano e cultuavam os heróis da pátria de origem, como Garibaldi ou como os grandes da Casa de Savóia . Fundam em julho de 1877 uma Sociedade que receberia o nome de "Vittorio Emanuelle IIº, em homenagem ao rei unificador, mas nomeiam Garibaldi como presidente de honra . Fotografias comprovam  a imponência da sede social, à rua Sete de Setembro. Em estilo neoclássico, tem  parte da fachada em mármore, sacadas de ferro,  nichos com esculturas e alegorias à pátria distante. Como todas as sociedades italianas  foi lacrada durante a Segunda Guerra,  sendo sua documentação apreendida e posteriormente perdida, talvez no incêndio da Repartição Central de Polícia. A Vittorio nunca foi reaberta e, nos anos setenta,  o prédio foi demolido, apesar do que representava para a comunidade italiana .

Muitas outras agremiações foram fundadas  nos diferentes espaços da cidade. É o caso da "Principessa Elena de Montenegro", em 1893, que logo teria sua sede própria na Rua João Telles, onde hoje encontra-se a  Sociedade Italiana do RGS.

Mas o grupo italiano diversificava-se, em decorrência  do ingresso de enormes contingentes de imigrantes  Em 1884, o Cônsul Pascale Corte afirma  que, entre os "súditos", estão representadas todas as profissões. Há médicos, farmacêuticos, engenheiros,  comerciantes. Há artistas plásticos, fotógrafos, professores de música. Menciona cinzeladores, vendedores ambulantes, donos de botequim, hoteleiros, carpinteiros,  carroceiros.

Porto Alegre então já apresentava um esboço de modernidade. No final do século são muitas as novidades, seja no vestuário, nas artes ou no modo  de desfrutar a vida. Era até mesmo possível olhar vitrines iluminadas por eletricidade .

Em aspectos arquitetônicos houve radicais mudanças, a fisionomia luso-brasileira desaparecia, cedendo espaço para o neoclássico e para o nouveau.  Atraídos   pelo surto de urbanização, inúmeros arquitetos, escultores e engenheiros provenientes da Itália ingressaram na cidade e colocam mãos à obra, nos primeiros tempos republicanos. Valiera, os irmãos Tomatis, que realizaram importantes projetos em arte floral, ou art nouveau, como a antiga Farmácia Carvalho; Trebbi, Fortini, Armando Boni, arquiteto construtor do edifício da Livraria do Globo e do Palacinho, onde despacha o vice-governador; dentre muitos outros, o veneziano Colfosco, responsável pelo projeto e execução do prédio da prefeitura municipal.  Não  é possível deixar de citar Giuseppe Gaudenzi, responsável pelo tratamento das fachadas da Confeitaria Rocco, prédio que também se encontra em deplorável estado de conservação.

Houve melhoramentos como a construção do novo cais e da estação ferroviária. Elaborou-se o primeiro plano urbanístico que transformaria o Centro na década de 1920. 

O passeio na rua iluminada, o lazer no café, a freqüência ao cinema acabavam com os monótonos serões noturnos. As fitas faziam furor nas telas do cine-teatro Eden, do Apolo, do Metrópole, substituindo o cinematógrafo, curiosidade exibida  até mesmo nos circos. Degani & Cia. , por exemplo, apresentara o Cinematógrafo parisiense na "praça de touros" que havia onde depois esteve o grande Teatro Coliseu, dos irmãos Petrelli, também desaparecido.. Mas as salas de projeção se multiplicariam, alcançando os mais distantes arrabaldes. Surgiram verdadeiras redes de cinemas pertencentes a italianos. Os Faillacce, os Sirangelo e os Grecco foram proprietários das melhores salas cinematográficas da cidade.

E os peninsulares continuavam chegando. Entre 1875 e 1914, ingressaram no Rio Grande do Sul entre oitenta e cem mil italianos,  representando cerca de 60% dos novos imigrantes. Um bom número ficava na capital.
 
O Cônsul Corte observou os imigrantes aqui poupavam e estava contente porque gastava pouco com repatriamentos no Rio Grande do Sul.

Dirigindo o consulado em 1892, o conde Brichanteau dava prioridade às questões financeiras no seu relatório, enfatizando as polpudas remessas de dinheiro feitas por meridionais de Porto Alegre para a Itália.

De Velutiis tem seu relatório consular publicado em 1908 e descreve as colônias urbanas, comemorando o progresso dos imigrantes. O cônsul observa que na liderança  do grupo italiano estão surgindo elementos novos: pequenos comerciantes e pequenos industriais, sérios e empreendedores. Esclarece que há meridionais em grande número , em especial calabreses  de Morano Calabro.

São principalmente os italianos meridionais que constituem a imigração italiana na cidade entre 1875 e 1930. Fazem parte de uma pequena burguesia, entendida como classe de transição. Trabalham por conta própria em sua oficina ou sua loja , apoiando-se no trabalho pessoal do proprietário e de sua família. 

Os relatórios consulares coincidem quanto às suas ocupações, destacando que poucos trabalhavam para patrões e que a condição do imigrante, em geral, se não era excelente, também não era desconfortável.

Quanto ao comércio, percebe-se efetiva concentração dos italianos nos ramos de secos e molhados, alfaiatarias, calçados, carne, agências lotéricas, massas alimentícias, bares e cafés.

Há fortes estabelecimentos comerciais nas ruas centrais, há grandes redes de agências lotérias ou de açougues, como a demonstrar possibilidades de ascensão social. No operariado a presença  passa desapercebida, ao contrário do que acontecia em São Paulo.  De Velutiis, em 1908, escreveu que poucos  trabalhavam para patrões; que os imigrantes demonstravam capacidade de estabelecer-se por conta própria com oficinas ou casas de comércio e que, em geral, prosperavam.

Houve uma convergência entre os valores dos imigrantes e aqueles da doutrina positivista que inspirava os nossos governantes. Os italianos buscavam a ascensão social através do trabalho e , neste processo, foram fundamentais as relações familiares. Entre os italianos de Porto Alegre funcionou um sistema informal de relações com base na estrutura familiar e no grupo étnico .  A família do tipo extensivo manteve-se; as empresas familiares predominaram entre os imigrantes. Aqui uma maioria trabalhou em paz , desejou e alcançou a inserção social.  A capital do Rio Grande representou uma terra de promissão para  milhares de pessoas que atravessaram o  oceano. Por bem mais de 130 anos, os italianos vêm auxiliando na construção de um cosmopolitismo à la gaúcha.  Importantes agentes de transformação, muito trabalharam e trabalham na cidade que também é sua. 

(*) Pós-Doutora em História, Professora do Curso de Pós-Graduação da PUC-RS

Notas:

1. Paul Singer. Desenvolvimento econômico e evolução urbana.   S.Paulo: Nacional/Ed. da Universidade de São Paulo,1968. p.105.
2. CUEVA, Agustín.  "La concepción marxista de las classes socials". Debate & Crítica, São Paulo, n.3, julho de 1974. p.103.
3. MOROSINI, Marília Costa.   "Imigrantes italianos que 'deram certo'em Porto Alegre e a esfera do trabalho".   Veritas.  Porto Alegre, n.32, setembro 1987.