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A Casa de Maria: A cidade de Éfeso no tempo de Maria e João

I - A cidade de Éfeso no tempo de Maria e João

Nos anos imediatamente sucessivos à morte e à ressurreição de Jesus, a pequena seita de agitadores, conhecidos como cristãos, gozou, em Jerusalém, um período de relativa tolerância. Porém, na medida em que crescia o número de adeptos e a sua influência, diminuía a paciência das autoridades judaicas, até, em 37 d.C., vir a desaparecer de todo. Naquele ano, vide o martírio de Santo Estevão, inicia a perseguição direta à comunidade cristã de Jerusalém. Nos cinco anos seguintes, a caça se torna ainda mais cruel, atingindo o seu ápice no ano de 42 d.C., quando Erodes Agripa I sobe ao trono e ordena a prisão de São Pedro e a decapitação de São Tiago, irmão de São João.

Foi, assim que, naquelas circunstâncias, a maior parte dos cristãos, incluindo provavelmente São João e a Virgem Maria, fugiu. Muitos encontraram abrigo na Judéia e na Samaria, já os encarregados em difundir a mensagem de Jesus, como João, buscaram terras mais distantes. João partiu para Éfeso e, fiel ao compromisso assumido com Jesus crucificado, conduziu consigo Maria e outros diversos crentes.

É difícil avaliar as dificuldades de uma viagem daquela distância, naquelas condições, sobre aquele terreno. Maria, sobretudo, deve ter sofrido durante a longa fuga para fora da Terra Santa - à época, ela poderia ter uns sessenta anos. Podemos imaginar a reação deste pequeno grupo de fugitivos ao avistar o esplendor de Éfeso: uma das maiores cidades do Oriente, um dos mais importantes centros econômicos do Império Romano, sede do primeiro banco do mundo, cidade de grandes riquezas e entre as mais populosas. De fato, deve ter sido surpreendente.

1. Olhar panorâmico sobre a cidade

Aproximando-se de Éfeso, ao longo daquela que hoje vem a ser chamada rua da Virgem Maria, eles devem ter se deparado com as imponentes muralhas da cidade, construídas por Lisímaco, general de Alexandre Magno e, depois, seu sucessor, no século III a.C. Pela esquerda, os muros avançavam por toda a encosta da Colina dos Rouxinóis. Entrando na cidade pela Porta de Magnésia, atingia-se, primeiramente, a Ágora estatal: uma imponente praça pública circundada por edifícios que serviam de centro administrativo. Pelo norte, em frente à estrada, encontrava-se uma grandiosa basílica que hospedava os tribunais. A mesma praça, uma área semi-sacra onde ocorriam reuniões políticas e religiosas, era oculta aos olhos, mas o grande vozerio que vinha dali indicava a sua importância. Um pouco além da Ágora, do outro lado da rua, deparava-se com as oito grandes colunas dóricas do Pritaneu, em cuja frente queimava, dia e noite, a chama sagrada de Éfeso. Mais adiante, as fontes e os imponentes monumentos, juntos, constituíam a chancela imperial de Roma.

Prosseguindo, alcançava-se a passagem em arco que dava para a rua dos Cureti, que levava o nome de uma particular ordem de sacerdotes consagrados a Ártemis. Ela conduzia até o centro da cidade. A via era delimitada por estátuas de mármore representando os dignitários de Éfeso e era ladeada por pórticos com pavimentos em mosaico. Sobre esses pórticos, levantavam-se, em ambos os lados, edifícios, sobretudo públicos e comerciais à direita, e privados e residenciais à esquerda; também à esquerda, sobre a encosta da colina, erguiam-se as vilas dos ricos e dos poderosos. 

Virando à direita, no fim da rua dos Cureti, Maria e seus companheiros teriam uma das vistas mais extraordinárias do mundo antigo. À esquerda, a monumental Porta de Mazzeo e Mitridate, de três arcos, através da qual se tinha acesso à Ágora comercial, a praça do mercado da cidade. No seu exterior, ao longo de mais de uma centena de metros, ficavam fileiras de negócios em galerias com pórticos. Seguindo, do outro lado da estrada, à direita, atingia-se o Grande Teatro, um impressionante anfiteatro construído sobre a inclinação da colina e que podia acolher 24.000 espectadores. E, mais além, ao longe, localizava-se o grandioso templo de Ártemis, uma das sete maravilhas do mundo, 155 metros de comprimento e 55 metros de largura, com uma dupla fila de colunas monolíticas de 22 metros de altura que acompanhava as paredes: o maior edifício do mundo, inteiramente construído em mármore. 

Após, olhando do Grande Teatro em direção ao porto, via-se a rua do Porto (posteriormente chamada rua Arcadiana, em homenagem ao imperador Arcádio, no início do V século), uma ampla estrada orlada de colunas, pavimentada com mármore e ladeada por lojas, atrás de enormes pilares. Entre os negócios e as colunas corriam pequenas vielas para pedestres, calçadas por elaborados mosaicos. A rua, extensa em mais de quinhentos metros, era iluminada, à noite, por cinquenta grandes tochas, o que fazia de Éfeso, junto a Roma e a Antioquia, uma das três cidades antigas que possuía estradas iluminadas. Mas a rua do Porto não era somente uma rica artéria mercantil de grande tráfico: como terminava junto ao porto, sempre apinhado de navios provenientes de todo o mundo conhecido, ela era também a via cerimonial de acesso à cidade, pela qual tinham passado imperadores, personagens poderosos e outras figuras históricas, entre as quais Antonio e Cleópatra, nas suas visitas a Éfeso.

Acredita-se que Maria tenha passado os seus primeiros meses em Éfeso em uma casa localizada ao norte da rua do Porto, próxima a uma ampla arena esportiva, enquanto João providenciava a construção de uma casa para ela sobre a Colina dos Rouxinóis. Obviamente, não teria sentido especular sobre as circunstâncias exatas da vida de Maria em Éfeso, mas se pode dizer ao menos duas coisas, com certo grau de segurança. A primeira e mais importante: é improvável que ela se sentisse em perigo, perante as autoridades locais. O governo da cidade era conhecido pela sua tolerância religiosa, o que permitia aos hebreus, por exemplo, apesar do seu monoteísmo singular, ter sinagogas e praticar a sua religião abertamente, sem sofrer interferências. Portanto, não havia temor de perseguição, ao contrário de Jerusalém. Em segundo lugar, o conforto material de Maria, provavelmente, foi muito maior em Éfeso do que fora antes. Sobretudo, Éfeso era uma das poucas cidades do mundo onde a maior parte das casas era dotada de água corrente e podia-se encontrar, com facilidade, todo tipo de alimento, vestuário e utensílios domésticos.

A maior parte das coisas necessárias era encontrada na Ágora comercial, tanto no que se referia aos alimentos (pão, verduras, cereais, carne, peixe, animais vivos, óleo de oliva, vinho, mel, sal e ervas e especiarias árabes), quanto aos objetos para casa (utensílios da cozinha feitos de cobre, tigelas, ânforas e lâmpadas a óleo). A quem podia gastar, havia, ainda, sedas, perfumes e joias feitas com pedras preciosas. Ali, se podia comprar, também, o trabalho, pois, no local, desde o amanhecer, escravos e homens livres buscavam ocupação, esperando serem contratados por quem necessitasse de trabalhadores diaristas.        

2. A população

Os operadores comerciais, os vendedores ambulantes e os comerciantes da cidade eram, ainda, abundantemente superados em número pelos trabalhadores do campo. A agricultura era muito importante para a economia efesina e muitos dos cidadãos ricos haviam feito fortuna com o cultivo de terras que circundavam Éfeso... Mas, os cidadãos mais considerados eram aqueles que, de modo significativo, tinham contribuído para embelezar a cidade. No topo se encontravam os escultores, seguidos pelos arquitetos, pelos produtores de cerâmica (especialmente decoradores de vasos), tecelões e tintureiros, cortadores de pedras, ourives, joalheiros, entalhadores de marfim, ferreiros e vidraceiros. Os doutores eram importantes, é certo, mas não muito mais do que os barbeiros. E faz refletir, prazerosamente, o fato de que os advogados fossem obrigados a prestar seus serviços gratuitamente, ainda que se permitisse a eles requerer uma compensação simbólica.

Existia, em contrapartida, um luxo ao alcance de todos os efésios, independente da sua condição social ou econômica: as termas públicas. Os ambientes eram separados para os homens e as mulheres, entretanto, era permitido às mulheres acessar o banho dos homens, nas primeiras horas da manhã... Um rico podia passar a tarde toda nas termas, sentado com os amigos, a abordar qualquer questão e a resolver todos os problemas do dia. E havia muito sobre o que discutir nos anos sucessivos à chegada de Maria na cidade. Recordemos os eventos principais: o assassinato de Calígula pelos seus pretorianos, em 42 d.C.; a invasão romana da Bretanha e a construção de uma sede chamada Londinium sobre as margens do Tamisa, em 43; a controversa pregação de Paulo, em Éfeso, a partir de 53; o envenenamento de Claudio por sua mulher Agripina, no ano 54, e o seu assassinato, em 59, ordenado por seu filho Nero que, depois, mandou executar sua mulher Otávia, em 62, e se suicidou em 68, dois anos antes da destruição de Jerusalém, em 70; uma série de terremotos que se fizera sentir, em vários pontos do Império, e culminaram com o desaparecimento de Pompéia, sob as cinzas do Vesúvio, em 79. Seguramente, muito sobre o que tratar!

E os ricos, quando não se divertiam nas termas, desfrutavam de suas vilas suntuosas. Muitas eram de três andares e possuíam interiores estupendos. Cada casa se erguia em torno de um amplo pátio interno, pavimentado em mármore – que poderia se estender até cinqüenta metros quadrados, descoberto no alto para deixar entrar a luz do sol – frequentemente, com uma fonte ao centro e circundado por colunas, igualmente de mármore. O plano superior da vila era sempre ocupado por quartos de dormir. O andar térreo era reservado aos “ambientes públicos”: salas de refeições, de hospedagem e a principal, onde os patrões da casa recebiam os hospedes. Nas extremidades, ficavam os ambientes da criadagem: cozinha, banho, toilette e lavabos... Toda residência tinha a sua cisterna ou poço, além da água corrente da cidade, e contava com aquecimento centralizado, o mesmo sistema hipocausto  que aquecia as termas públicas.

Além das amenidades oferecidas pelas termas públicas, outro prazer do qual usufruíam tanto ricos, quanto pobres – embora, evidentemente, em medidas diferentes -, era o da boa mesa. A dieta constituía-se de alimentos à base de farinha de trigo, com cebola, alho e queijo... Ainda, abundavam o peixe e a carne de carneiro. Naturalmente, nos lares dos ricos, as refeições eram mais variadas e abundantes.

Todas as refeições, fossem as do rico ou as do pobre, dispunham de três coisas em comum: o vinho, o mel e o sal. É referido o fato de Éfeso ter sido famosa pelo seu vinho – anualmente, em 19 de agosto, acontecia a festa do vinho – e pelo seu mel (a abelha, antigo símbolo de Éfeso, aparece em algumas de suas moedas). Quanto ao sal, ele era considerado tão importante que mesmo as famílias mais pobres faziam sacrifícios a fim de ter uma saleira à mesa.

Em matéria de vestimenta, pouco era preciso para distinguir os abastados dos cidadãos menos privilegiados. O vestuário cotidiano da população comum era composto pela túnica, feita de um misto de algodão e lã, e de custosa seda para quem gozasse de maiores recursos. Havia túnicas com mangas e outras sem, mas todas munidas de cintura dos lados. As túnicas dos homens eram curtas e feitas de um único pedaço de pano. As das mulheres eram longas e resultavam de dois pedaços de tecido, um sobreposto ao outro. E enquanto os homens se vestiam todos de branco, as mulheres, ao invés, ostentavam túnicas de várias cores, tais como o azul, o violeta e o amarelo açafrão, as mais comuns. A familiar toga romana era raramente vestida, afora as grandes ocasiões, os sacrifícios e as festas públicas. Os trabalhadores manuais e os escravos, habitualmente, trajavam uma indumentária marrom, em forma de saco, chamado cucullus, que descia do colo até os joelhos.

No tempo da chegada de Maria a Éfeso, os homens não usavam mais a barba, mas seguiam uma das modas mais excêntricas da época: a dos cabelos loiros. Tanto os homens quanto as mulheres, exibiam os cabelos tingidos de loiro ou portavam perucas loiras.

Em suma, a Éfeso em que Maria viveu se tratava de um lugar feliz e civilizado. Isto era devido, em parte, à sua riqueza e, em parte, ao governo da cidade que era particularmente iluminado segundo os modelos modernos. Havia um sistema fiscal imparcial e quando parcial o era em favorecimento do pobre. Por exemplo, existia uma taxa no valor de um dinheiro para a expedição da certidão de nascimento, mas se a mãe fosse membro da classe abastada ou intentasse ser considerada como tal, a taxa seria de cem dinheiros. Do mesmo modo, o pobre tinha o direito de receber certos benefícios para as crianças, além de grãos gratuitos e a entrada livre nas termas públicas. O conselho administrativo da cidade, o Demos, realizava as suas reuniões no Teatro Grande, às quais todos os efésios podiam assistir, livremente. O Teatro Grande era também sede de frequentes concertos musicais, recitais poéticos e exibição de espetáculos clássicos. Os efésios do I século estavam entre as pessoas mais afortunadas do Império, e o sabiam!

3. Paulo e os primeiros cristãos em Éfeso

Pode-se afirmar que não havia nada que pudesse perturbar o bem-estar dos efésios – e, igualmente, o seu próprio compadecimento –, até 53 d.C., quando entra em cena Paulo de Tarso, quem os faz ver que seus deuses eram um nada: na realidade, havia somente um único Deus! No início, ele pregou nas sinagogas, porém, depois de alguns meses, se transferiu para as salas de conferência de Tirano, onde, por dois anos e meio, ensinou todos os dias, das onze da manhã às quatro da tarde. Durante aquele período muitos se converteram, porém isto provocou mau humor e preocupações, particularmente, entre os ourives que extraiam bons lucros, sobretudo, da venda de estatuetas e medalhões da deusa Ártemis.

Um deles, certo Demetrio, decidiu, ao fim, fazer alguma coisa contra esta ameaça que competia com o seu comércio, e, então, organizou uma reunião com todos cuja sobrevivência dependia de Ártemis e das outras divindades greco-romanas.  Depois de conseguir, com sucesso, inflamar os ouvintes, evocando os temores para os negócios, ele colocou “mais lenha na fogueira”, insistindo que aquele cristão intruso insultava, também, a dignidade da grande deusa. Na sua fúria coletiva, os ouvintes aumentaram até se tornarem uma multidão e tomarem de assalto o Grande Teatro, onde por duas horas gritaram: “Grande é Ártemis dos efésios!”. Enquanto o contágio da cólera se difundia entre a massa, o teatro ficava repleto de pessoas que não tinham idéia do porque de todo aquele barulho. E assim – e não pela última vez na história –, o interesse comercial privado e a demagogia despudorada se acordaram, perfeitamente, para criar uma “opinião pública” em benefício próprio.  

Paulo tinha manifestara a intenção de enfrentar a multidão para lutar pessoalmente contra a revolta, mas os amigos o persuadiram diferentemente. Após, com a ajuda deles, conseguiu, a muito custo, colocar-se a salvo. Ao fim, a ordem foi restabelecida somente depois que o chanceler da cidade se apresentou à multidão recordando que, se qualquer um possuía acusações a fazer, o tribunal era o lugar indicado para buscar justiça. Pouco depois, Paulo deixou Éfeso e foi para a Macedônia. Provavelmente, em 64 d.C. ele sofreu o martírio em Roma e João se tornou o chefe da Igreja de Éfeso.

Mas a atividade dos apóstolos não foi a única presença cristã influente em Éfeso, durante os primeiros tempos da Igreja. Também Lucas, provavelmente, esteve em Éfeso, por certo período, e alguns estudiosos sustentam que em Éfeso ele teria escrito o seu Evangelho. Menciona-se, ainda, que Marcos teria acompanhado Pedro a Éfeso, enquanto Filipe ali teria vivido por algum tempo, antes de se transferir a Hierápolis , em torno de cento e cinqüenta quilômetros a leste de Éfeso, onde pregou até o martírio.

O quanto desta atividade missionária alcançou a atenção de Maria, o quanto ela viveu e pôde ver disso tudo, ninguém o sabe. Uma vez que se sustenta que ela tenha sido transferida para a casa sobre a Colina dos Rouxinóis, poucos meses após a sua chegada a Éfeso, ela deve ter sido mantida longe do correr cotidiano das notícias que caracterizavam a metrópole abaixo. De outra parte, os membros da comunidade cristã efesina, em contínuo crescimento, alguns dos quais vivendo exatamente nas suas vizinhanças, ao lado da montanha, seguramente a mantiveram a par dos acontecimentos, e mesmo João poderia informá-la sobre sua atividade apostólica.

Do mesmo modo, podemos somente fazer conjecturas sobre quanto tempo Maria viveu naquela casa. Alguns antecipam a morte de Maria em 43 d.C., outros, ao invés, retardam-na ao fim do ano 63. A minha opinião é que a morte deva ter ocorrido, provavelmente, na metade destas duas datas. Não o saberemos jamais, como de resto não saberemos jamais a data exata da crucificação de Jesus. Aquilo que importa é que, graças à curiosidade e à teimosia de alguns homens e mulheres de tantos séculos depois, hoje conhecemos muito mais do quanto se era sabido sobre os anos que antecederam a morte de Maria, e estou convicto que no futuro saberemos ainda mais.

[continua...]

3 - A Casa de Maria: A sedimentação da história

Donald Carrol, A CASA DE MARIA. Uma história maravilhosa: Como foi descoberta em Efeso a casa da Virgem Maria.

Tradução do italiano
Cláudia Rejane Turelli do Carmo

La Casa di Maria - Una storia meravigliosa: come fu scoperta a Efeso l'abitazione della Vergine Maria

Edição italiana
Edizioni San Paolo s.r.l, 2008
www.edizionisanpaolo.it 

Tradução do inglês
Paolo Pellizzari
ISBN 978-88-215-6227-3

Título original da obra:
MARY’S HOUSE. The straordinary story behind the Discovery of the house where the Virgen Mary lived and died.
Primeira publicação na Grã-Bretanha por Veritas Book, em 2000.