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Olhar e ser visto: Casa Fiat de Cultura apresenta a arte do retrato

Quem sou eu? Qual a minha imagem? Ao longo dos séculos, artistas de diversos estilos responderam de modo muito particular a tais questionamentos. Ao retratar homens e mulheres, grandes pintores não só saciavam as indagações existenciais das personalidades que representavam, como eram capazes de lhes imortalizar, na tela. Eis o motivo por que, diante de um retrato, o observador segue para muito além do que vê no quadro. Afinal, como se num jogo de espelhos, ele é delicadamente convidado a participar daquele íntimo e intenso diálogo de imagens e desejos.

Entregar os olhos a tal fascinante exercício de percepção será a senha para que o público aprecie, de 3 de maio a 3 de julho de 2011, na Casa Fiat de Cultura, a exposição Olhar e ser visto – a figura humana da Renascença ao contemporâneo. No ano em que a Casa Fiat de Cultura completa cinco anos de atuação nos 35 anos da Fiat no Brasil, a instituição apresenta ao público uma visão sobre a pintura de retrato de um dos mais respeitados acervos do mundo. A mostra é uma síntese do gênero mais consistente da coleção do Masp. Os visitantes terão acesso a 40 retratos, reunidos em seis núcleos temáticos, de um recorte que vai do final do século XVI aos dias de hoje.

Sob responsabilidade do curador coordenador do Museu de Arte de São Paulo (Masp), professor Teixeira Coelho, a curadoria pretende fazer com que os visitantes compreendam o que o retrato representa nas artes plásticas. A mostra celebra, ainda, a parceria de cinco anos entre a Fiat e o Masp, iniciada com a exposição Arte Italiana do Masp na Casa Fiat de Cultura, que inaugurou as instalações da Casa Fiat. “Ao enfrentar seu batismo de fogo, foi às portas do Masp que nossa Casa foi bater. Assim, em nosso quinto aniversário, nada mais justo que festejar a parceria com a apresentação desse extraordinário recorte do museu paulistano”, conta o presidente da Casa Fiat de Cultura, José Eduardo de Lima Pereira.

O curador Teixeira Coelho explica que o retrato permanece “um gênero de primeira ordem no mundo das artes e, dentre vários motivos, devido a uma aspiração fundamental do ser humano: a de saber como ele é aos olhos do outro”. A partir de tal afirmação, é possível compreender melhor a aura que reveste o retrato numa pintura ou escultura, seja com nítidos e impecáveis traços, como nos quadros de Almeida Júnior (Moça com livro) e Paris Bordon (Retrato de Alvise Contarini); seja por figuras abstratas, que mais falam da alma do que do visível, como em Flávio de Carvalho (Retrato de Assis Chateaubriand e Retrato da Pintora Tarsila) e Chemiakin (Retrato Duplo de Nijinski).

Os 40 exemplares reunidos na mostra estão organizados em seis núcleos, que remontam a períodos e estilos diferenciados: O retrato da pompa (primeiros retratos autônomos, com início no século XII); O recurso à cena (em que os modelos principais são acompanhados por cenários, outras pessoas e objetos); Eu mesmo (era dos auto-retratos e da atração narcisista pela imagem); Retratos modernos (retomada dos modelos enquanto foco, mas com certa estranheza e técnicas diferenciadas); Retrato de ideias (menos parecidas com seus retratados e mais com ideias e emoções) e Desconstrução (a figura retrata sofre interferência de objetos, pinceladas, devaneios e outros que desfazem a identidade central).

Dentre as obras da exposição, destacam-se os retratos de Toulouse-Lautrec (Bailarina Loïe Fuller vista dos bastidores – A Roda), Modigliani (Lunia Czechowska), Picasso (Busto de homem – O Atleta) e os autorretratos de Pancetti e Darcy Penteado.

Núcleo O retrato da Pompa – 5 obras
Os primeiros retratos ditos autônomos – que não são mais parte da arquitetura – surgem no século XIII e ganham impulso com a invenção da portátil tela de pano como suporte (o mais antigo exemplo de pintura sobre tela é uma Madona de 1410). Os retratos deste grupo são ditos “de aparato”. A imagem construída pelo artista deve ser impressionante: o retratado é mostrado como alguém especial, subtraído quase aos acidentes do efêmero. Daí serem, de certo modo, atemporais. Não fosse pelas roupas que ajudam a configurar e situar os que as envergam, os retratados quase estariam fora de um lugar e época determinados. São exemplares, neste sentido, os retratos assinados por Goya, Van Dyck ou Hals: os retratados estão sobre fundo neutro (ou genérico, como na tela de Gainsborough) e se deixam ver em poses hieráticas, afirmativas, quer apareçam de corpo inteiro ou de meio corpo. São retratos de pessoas e, também, símbolos de alguma outra coisa, sobretudo do poder. Os primeiros retratos foram os da realeza, do alto clero e da aristocracia, donde serem naturalmente “de aparato” (no Renascimento, surgem os retratos das pessoas mais comuns ou, em todo caso, dos burgueses). Como toda pintura de gênero, o que primeiro se retrata aqui é o próprio código a que a obra pertence – no caso, a própria pompa, a ideia de pompa; o retratado é meio para pintar-se a pompa em si mesma. O retratado existe porque a pompa existe.

Núcleo O recurso à cena – 6 obras
Os retratos deste grupo apresentam seus modelos junto a alguém mais, ou a alguma outra coisa, fazendo alguma coisa, representando alguma coisa: compõem, com as outras pessoas ou coisas representadas, uma cena que lhes empresta ou sugere uma qualidade específica. De algum modo, todo retrato compõe uma cena, em particular os retratos de aparato; aqui, porém, a cena é mais explícita e ampla e a narrativa que propõe é mais extensa, senão mais complexa. Várias das obras desse grupo relacionam-se àquelas exibidas entre os retratos da pompa, enquanto outras, em número não menor, remetem-se ao grupo dos retratos modernos, de que poderiam fazer parte com igual propriedade. Em certos casos, como nas obras de Nattier, a cena representada chega a compor uma alegoria, mas ela sempre será quase um teatro. É de 1310 a recomendação de Pietro d’Abano de que o retrato deveria expressar a aparência e a psicologia, ou a alma, do retratado – algo mais viável nos retratos desse grupo e do próximo do que naqueles “de aparato”. Daí não se deve concluir, porém, que a semelhança sempre tenha sido tudo, no retrato: antes da modernidade proposta pelo século XIX, conforme o princípio da dissimulatio (dissimulação), o realismo deveria submeter-se aos interesses contextuais da representação, razão pela qual, sobretudo nos retratos de pompa ou aparato, os eventuais defeitos físicos dos modelos eram diminuídos ou ocultados. Na contemporaneidade, o corpo humano em seu realismo mais cru, em suas falhas e sua decadência, será mostrado sem disfarces.

Núcleo Eu Mesmo – 6 obras
Atração narcisista pela própria imagem; tentativa de sair de si mesmo para, enfim, ver-se melhor, ver-se de outro modo; a simples comodidade de ser o modelo mais disponível; no início de sua história, esforço do artista para que o vissem como aqueles que ele próprio retratava, isto é, como um membro das classes altas, das profissões liberais (intelectuais) e não das manuais, que dependiam do esforço físico: tudo isso se encontra na origem e na história do autorretrato. Rembrandt, com a retratação insistente de si mesmo, não raro impiedosa, foi um equivalente dos poetas que repetidamente mergulham em si para vislumbrar ao menos um pouco da natureza humana. Já Pancetti buscava ver não tanto e não só aquilo que de pessoal existia em si mesmo, como também o que de mais coletivo nele ecoava. E Max Beckmann atribui a seu próprio retrato uma dimensão que ultrapassa a alegoria, para tocar na metafísica. Em todos os casos, o espelho de que se serve o artista, por mais polido que seja, revela-se opaco ou tem um grau de refração que o torna inútil – porque reflete tanto o retratado quanto quem o mira. A refração, como se sabe, modifica a velocidade da luz, matéria da pintura, e dá do objeto uma imagem ligeiramente fora de eixo, distorcendo-o no ambiente, ao mesmo tempo em que o mostra muito tal qual é: na tela de Darcy Penteado, a refração parece ter atingido o auge.

Núcleo Retratos modernos – 9 obras
Aqui, à primeira vista, os retratos são das pessoas elas mesmas, mais do que de alguma coisa que esteja por trás delas, que representem e na qual se amparem. O que se representa são elas mesmas e não o eventual poder que tenham ou o objeto ou o ser que as definam. Mas, por maior que seja a verossimilhança, em muitas destas telas, ou todas, predomina uma sensação de estranheza: mesmo que se ofereçam nuamente ao olhar, por imóveis que estejam (e, talvez, por isso mesmo), tampouco aqui elas se revelam de todo, se expõem. Tanto quanto a pessoa, o que se vê é a persona, a máscara que os retratados usam para se deixarem ver (quando não para se verem). De certo modo, essa é uma qualidade da maioria dos retratos, senão de todos; no modo deste grupo, porém, esse tom é mais acentuado porque nenhum objeto de contexto ou símbolo sugerido vem em socorro do retratado – ou de quem o observa. As pessoas não são, porém, a única coisa que se retrata aqui. Cézanne pinta tanto sua mulher quanto a arte pré-renascentista e a nova arte (cada retrato seu, como vários de Picasso, é também um retrato da história da arte). E Van Gogh faz seu modelo, como o escolar, competir com o entorno (e praticamente perder para ele). Tanto quanto nos retratos de aparato, também nesses o fundo é quase sempre vago, neutro e indefinido. O sentido, no entanto, é diverso neste caso. Aqui, é como se o sentido da pessoa retratada fosse suficiente para encher o espaço definido pela tela, como se nada mais fosse preciso para apresentar e definir quem ela é. A semelhança entre o modelo e o representado fez o sucesso do retrato e também, no início, foi motivo de crítica, pelo menos entre os intelectuais. Vasari, iniciador da História da Arte como disciplina no século XVI, considerava o retrato um gênero menor, por ser uma reprodução direta da realidade (um ritrarre) e não a representação do real conforme um conceito orientador (o imitare), próprio da grande arte imaginativa. (Um escrito central de Leonardo da Vinci propôs que a arte é, sempre, uma coisa mental.)

Núcleo Retrato de ideias – 8 obras
O retrato “convencional” é uma representação extraída diretamente da vida (ritrarre). Seu oposto, o retrato que se serve do imitare, é um acréscimo à vida, gera algo que não existia antes e, portanto, não é uma reapresentação, mas uma apresentação primeira, uma presentificação: só existe no presente da arte que o propõe. A pessoa real que serviu para a representação pode ou não aparecer tal qual na obra – que, no entanto, não é seu retrato, uma vez que ela não é explicitamente identificada. O que a obra retrata, antes, são ideias (estéticas, sociais, psicológicas). Tais obras se servem das pessoas para por em cena as ideias (ideias do que seja uma família, um casal, uma profissão, uma atividade, uma situação, uma emoção). Em arte, de fato, nunca é diferente. Também O filho do carteiro, de Van Gogh, e o auto-retrato de Pancetti são, sobretudo, retratos das ideias estéticas dos artistas, antes de serem retratos de pessoas. Contudo, nas obras do presente grupo, O retrato de ideias, esse compromisso com as ideias e os ideais, por cima da pessoa representada, é ainda mais claro e destacado.

Núcleo Desconstrução – 6 obras
Com a arte moderna do final do século XIX, a figura – e, com ela, a identidade – vai-se desfazendo e substituindo por outra coisa. Picasso apresenta uma evidência exemplar desse modo, decompondo a cabeça do personagem numa multiplicidade de fragmentos cuja soma é maior que o todo. Flávio de Carvalho e Chemiakin adotam procedimentos diferentes, que convergem, no entanto, para o mesmo fim: o retratado desaparece em favor da retratação da própria arte, da estética do artista, para quem o retratado é apenas um pretexto, e nem de longe o mais importante. A representação do que está fora da arte chegou a seu fim.

O que contavam os retratos e o que contam hoje?

Olhar e ser visto apresenta, a um público diversificado, imagens igualmente multi-facetadas. Estão expostas obras familiares, como as telas a óleo de Portinari e os rechonchudos corpos de Diego Rivera; ou mais estranhas, como a litogravura obscura do alemão Käthe Kollwitz. É nas diferenças técnicas, e em semelhanças como a forma de retratar os modelos e seu entorno, que o curador Teixeira Coelho aponta uma reflexão interessante: o que contavam os retratos e o que contam hoje?

As primeiras telas da exposição, do núcleo O retrato da pompa mostram corpos inteiros, imponentes como os cargos que ocupavam – eram quadros geralmente encomendados por reis, figuras públicas de cargos de poder e egos igualmente inflados. Aos poucos, as imagens realistas ganham decorações, fundos campestres, acessórios. Em oposição, a arte moderna privilegia o modo particular do artista de ver as coisas, aceitando sua perspectiva e recorrendo, muitas vezes, às distorções, como mostram as referências dos exemplares artísticos do núcleo Desconstrução. Ali está, por exemplo, a fotografia de Arthur Omar, intitulada A menina dos olhos, da série Antropologia da Face Gloriosa. Aliás, imagem que tem menos de glória e mais de deformação compondo sua estranha beleza.

A exposição é uma realização da Casa Fiat de Cultura e do MASP, com patrocínio da Fiat Automóveis, parcerias da APPA e do Santander e apoio do Ministério da Cultura, através da Lei de Incentivo à Cultura. A produção executiva é da Base 7 Projetos Culturais.

Programa Educativo

Como em todas as exposições realizadas pela Casa Fiat de Cultura, Olhar e ser visto – A figura humana da renascença ao contemporâneo conta com um Programa Educativo elaborado especialmente para atender grupos, professores e alunos de escolas das redes pública e privada. As visitas orientadas são realizadas por uma equipe de educadores capacitados pela instituição.

Concebido pelo coordenador do Serviço Educativo do Masp, Paulo Portella Filho, o Programa Educativo desta exposição pretende estabelecer diálogos, entre educador e visitante, a partir da observação das obras e questionamento dos integrantes do grupo, independente de idade, nível de ensino ou conhecimentos em arte. O princípio é o da Pedagogia da Pergunta, que valoriza os saberes dos participantes e estimula a observação e a crítica. O objetivo, além de educar e agregar informações, é estimular um olhar mais atento e curioso, com estado de atenção diferenciado.

Outro serviço oferecido pelo Programa é a assessoria ao professor. Com o formato de workshop, esta assistência foi elaborada para dar suporte aos professores e profissionais interessados em desenvolver seu próprio roteiro de visita. Ao trabalhar em grupos pequenos, o participante terá a oportunidade de discutir, com supervisão do Programa Educativo, abordagens direcionadas para os seus interesses específicos.

Nos fins de semana, o público visitante terá acesso ao programa educativo que, de terça a sexta-feira, é direcionado para escolas e grupos agendados. O agendamento para grupos, escolas e assessoria ao professor poderá ser feito pelo telefone (31) 3289-8910 ou pelo e-mail agendamento1@casafiat.com.br.

Programação paralela

11/05 – Palestra “O Retrato na História da Arte”
Palestrante: Rodrigo Vivas, Doutor em História da Arte - UNICAMP e professor de História da Arte - EBA/UFMG e PUC/MG.
Horário: 19h30
Local: auditório da Casa Fiat de Cultura

18/05 – Palestra “Olhar e Ser Visto: a exposição”
Palestrante: Teixeira Coelho, curador da mostra e coordenador do Masp.
Horário: 19h30
Local: auditório da Casa Fiat de Cultura

15/06 – Palestra “Retratos escritos com luz”
Palestrante: Arthur Omar, artista, fotógrafo e cineasta, compõe a mostra com imagem da série Antropologia da Face Gloriosa.
Horário: 19h30
Local: auditório da Casa Fiat de Cultura


Cinco anos de arte e discussão

Desde 2006, mais de 250 mil pessoas visitaram a Casa Fiat de Cultura, que, desde sua fundação, destaca-se por abrigar grandes mostras internacionais de artes plásticas e apresentações inéditas de acervos brasileiros, com debates acadêmicos e programas educativos. Só em 2009, 124 mil visitantes apreciaram as exposições de Auguste Rodin e Marc Chagall, duas das mais importantes mostras do Ano da França no Brasil e que, após Belo Horizonte, seguiram para o Rio de Janeiro e São Paulo. Em 2010, a itinerância da mostra Guignard e o Oriente, realizada pela Casa Fiat de Cultura e o Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo e Porto Alegre, contou com público de mais de 50 mil pessoas.

Mantida pelas empresas do Grupo Fiat, a instituição é o primeiro espaço cultural criado por uma fabricante de automóveis no País. Sua programação destaca-se pelo alto valor histórico, artístico e educativo e tem entre seus objetivos o estímulo à circulação dos bens culturais, à difusão da cultura brasileira e mundial, à formação do público, à democratização do acesso às artes e à inclusão social. A Casa Fiat tem conseguido, ainda, superar o desafio de garantir experiências qualificadas e enriquecedoras para todos os públicos, que possibilitem gerar novas reflexões, conhecimentos e promover o desenvolvimento humano e social. 

Serviço:

Exposição Olhar e Ser Visto – a figura humana da Renascença ao Contemporâneo
Período: 3 de maio a 3 de julho
Local: Casa Fiat de Cultura – R. Jornalista Djalma Andrade, 1250 – Nova Lima – MG
Horário: Terças a sextas, de 10h às 21h
 Sábados, domingos e feriados, de 14h às 21h
Entrada e transporte gratuitos
Informações: 3289-8900 e www.casafiatdecultura.com.br
Visitas orientadas para grupos e escolas: 31 3289-8910 e agendamento1@casafiat.com.br