
A Gastronomia nos antigos Mosteiros e Ordens Religiosas da Itália
A culinária italiana, celebrada mundialmente por sua riqueza e simplicidade, guarda em suas raízes uma história profundamente entrelaçada com a espiritualidade e a vida monástica. Nos antigos mosteiros e conventos da Itália, padres, frades e freiras não apenas dedicavam suas vidas à oração e à contemplação, mas também desempenhavam um papel fundamental na preservação e no desenvolvimento da gastronomia tradicional. Esses espaços sagrados, muitas vezes isolados e autossuficientes, tornaram-se verdadeiros laboratórios culinários, onde a necessidade de sustento se unia à criatividade e à devoção, resultando em pratos que atravessaram séculos e ainda hoje encantam paladares.
A gastronomia monástica na Itália tem suas origens nas tradições beneditinas, que remontam ao século VI, quando São Bento de Núrsia fundou a Ordem de São Bento com a máxima ora et labora (reza e trabalha). Nos mosteiros beneditinos, como o de Montecassino, a alimentação era vista não apenas como uma necessidade física, mas como uma expressão de cuidado com a comunidade e de gratidão a Deus. As cozinhas monásticas seguiam os preceitos da Regra de São Bento, que recomendava moderação e valorização dos ingredientes locais, muitas vezes cultivados nos próprios terrenos dos mosteiros. Hortas, pomares e vinhedos eram cuidadosamente mantidos, e os monges desenvolviam técnicas de cultivo e conservação que influenciaram a agricultura italiana. Conforme descrito em estudos italianos, como os de Massimo Montanari em La fame e l’abbondanza, os mosteiros medievais foram centros de inovação alimentar, onde se experimentavam métodos de preservação, como a salga, a secagem e a fermentação, que garantiam a sobrevivência durante os longos invernos.
Os conventos femininos, por sua vez, também deixaram um legado significativo. Freiras de ordens como as Clarissas ou as Beneditinas dedicavam-se à preparação de doces e licores, muitas vezes vendidos para sustentar suas comunidades. Segundo o livro Cucina e conventi de Maria Giuseppina Muzzarelli, as freiras eram conhecidas por sua habilidade em transformar ingredientes simples, como mel, frutas e ervas, em delícias que se tornaram parte da tradição local. Um exemplo é o panpepato, um doce típico da Úmbria e da Toscana, cuja receita teria surgido nos conventos medievais, combinando especiarias, mel e frutas secas em uma celebração dos sabores da terra.
A vida monástica impunha restrições alimentares baseadas nos períodos litúrgicos, como a Quaresma, quando a carne era proibida e os monges recorriam a peixes, vegetais e leguminosas. Essa prática incentivou a criação de pratos criativos, como sopas ricas em ervas e grãos, que hoje são considerados clássicos da cucina povera italiana. A zuppa di farro, por exemplo, típica da região da Úmbria e associada aos mosteiros franciscanos, reflete essa simplicidade virtuosa, utilizando o farro (um tipo de trigo ancestral) cultivado localmente. Conforme apontado por Anna Maria Nada Patrone em Il cibo del povero e del ricco, os mosteiros não apenas preservaram receitas, mas também disseminaram o uso de ingredientes regionais, contribuindo para a identidade gastronômica de diferentes áreas da Itália.
Além disso, os mosteiros foram guardiões do conhecimento sobre ervas medicinais, que muitas vezes encontravam seu caminho até a mesa. Monges e freiras, conhecedores de botânica, usavam ervas como manjericão, alecrim e sálvia não apenas para tratar enfermidades, mas também para enriquecer os sabores de seus pratos. O licor Benedettino, criado no mosteiro de Fécamp (embora adaptado na Itália), é um exemplo de como o saber monástico sobre destilação e ervas resultou em produtos que transcenderam os muros dos conventos.
A influência dos mosteiros também se estendeu à produção de vinhos e queijos, atividades nas quais os monges eram mestres. Regiões como o Piemonte e a Toscana devem muito de sua tradição vinícola às ordens religiosas, que mantinham vinhedos e aperfeiçoavam técnicas de vinificação. O Chianti, por exemplo, tem raízes ligadas aos mosteiros medievais da Toscana, onde os monges produziam vinho para a liturgia e para o sustento da comunidade. Da mesma forma, queijos como o pecorino e o cacio eram fabricados em mosteiros, onde técnicas de maturação eram cuidadosamente desenvolvidas.
A gastronomia monástica italiana, portanto, é mais do que um conjunto de receitas: é um testemunho da harmonia entre espiritualidade, trabalho manual e respeito pela natureza. Nos pratos preparados por padres, frades e freiras, encontramos a essência da cucina italiana – simplicidade, qualidade dos ingredientes e um profundo senso de comunidade. Esta matéria celebra essas tradições, trazendo receitas que nasceram nos fogões de mosteiros e conventos e que continuam a contar a história de uma Itália onde a fé e o sabor caminham de mãos dadas.
Baseado na obra Il cucchiaio dell'abate: Pellegrinaggio gastronomico per Conventi e Monasteri (Ancora editrice, 2015), da jornalista e tradutora Matilde Maruri Alicante, o portal Aleteia publicou receitas de pratos tradicionais preparados por religiosos, que reproduziremos a seguir.
1) Coppola de Garibaldi
ONDE: Convento das Irmãs Beneditinas de Maria SS. di Montevergine em Mercogliano (Avellino/Campania).
INGREDIENTES (para 4 pessoas)
250 g de tagliatelle de ovo
200 g de ricota 150 g de mussarela 50 g de queijo da
sua preferência
2 ou 3 gemas
5 ou 6 fatias de presunto cozido (ou o suficiente para forrar a frigideira)
4 ou 5 colheres de sopa de molho de tomate
sal
MODO DE PREPARO
Um delicioso prato de massa assada. É simplesmente fettuccine coberto com ovos, ricota, queijo ralado e mussarela, mas a apresentação adiciona um toque de elegância e um toque festivo. As quantidades dos ingredientes podem ser ajustadas de acordo com o gosto pessoal. Prepare uma mistura de ricota, gemas, queijo ralado e cubinhos de mussarela. Cozinhe o tagliatelle em água com sal até ficar al dente, depois adicione com a mistura de queijo e ovos. Espalhe algumas colheres de molho de tomate no fundo de uma assadeira – de preferência redonda e funda, mas de preferência de Pyrex transparente – e forre toda a assadeira, incluindo as laterais, com fatias de presunto cozido. Deixe uma aba da fatia sobrando; ela servirá para fechar a "coppola". Despeje o tagliatelle temperado e alise a superfície. Dobre as abas das fatias de presunto por cima. Asse em forno quente por cerca de vinte minutos, para que os queijos derretam e os sabores se misturem. Desenforme em um prato e sirva quente. É preciso habilidade para cortar as porções sem destruir o prato inteiro, mas isso não deve ser um problema. O importante é que a obra de arte seja exibida aos convidados antes do corte, para que possam admirá-la com comodidade.
2) Bolo de pão velho
ONDE: Mosteiro trapista de Valserena Guardistello (Pisa/Toscana).
INGREDIENTES (para 4 pessoas)
300 g de pão
aproximadamente 2 dl de leite, 2 ou 3 colheres de sopa de
manteiga
4 colheres de sopa de açúcar granulado
1 ou 2 ovos
farinha de rosca (a gosto)
4 ou 5 colheres de sopa de pinhões (pinoli)
açúcar de confeiteiro (a gosto)
1 punhado de passas (sultanas)
MODO DE PREPARO:
Um bolo rápido e fácil, simples e modesto, mas com passas e pinhões que lembram um panetone rico. Receitas que reciclam vários ingredientes parecem muito modernas hoje em dia. "Adicione passas, se tiver", são as palavras da freira, que repito com precisão para não perder seu significado importante e o prazer de sempre ter tudo o que precisamos à mão.
Mergulhe o pão no leite morno, adicione a manteiga amolecida ou derretida, o açúcar granulado e os ovos. Bata tudo no liquidificador. Adicione as passas, se usar. Unte uma assadeira com manteiga e polvilhe com farinha de rosca, despeje a massa e leve ao forno a 150 °C (300 °F) por cerca de uma hora. Deixe esfriar e polvilhe com pinhões e açúcar de confeiteiro.
3) Sopa colombiana
ONDE: Convento das Servas do Sagrado Coração de Jesus Agoniadas de Lugo (Ravena/ Emília-Romanha).
INGREDIENTES (para 4 pessoas)
4 batatas
100g de arroz
100g de frango cortado em pedaços
1 talo de aipo
8 ou 10 colheres de sopa de grãos de milho, já cozidos
Pimenta em pó coentro em pó sal
PREPARO:
Esta sopa deliciosa e perfumada é muito fácil de preparar. O único cuidado é cozinhar o arroz. Não é difícil, mas quem está acostumado a cozinhá-lo em bastante água precisa prestar atenção à proporção de arroz e água. Depois de fazer isso, você nunca mais vai querer abandonar o método, porque arroz cozido dessa maneira é uma das melhores coisas do mundo. A receita não contém instruções específicas sobre o tipo de arroz a ser usado; minha opinião é que arroz com baixo teor de amido e que não grude seria suficiente. Como sou fã de basmati, não hesitaria, mas cada um tem suas preferências. Eu adicionaria algumas folhas frescas de coentro à sopa pouco antes de ficar pronta.
Cozinhe as batatas descascadas, adicione o frango (de preferência cozido), milho, aipo picado, uma pitada de coentro, uma pitada de pimenta e sal. Deixe as batatas cozinharem até que se desmanchem. Meça o arroz em uma tigela, despeje-o em uma panela e adicione água fria levemente salgada, certificando-se de adicionar a mesma quantidade de arroz. Tampe a panela e leve ao fogo alto, deixando ferver vigorosamente, sem mexer, até que a água seja quase absorvida. Em seguida, abaixe o fogo e continue cozinhando até que o arroz seja completamente absorvido. Desligue o fogo e deixe descansar até que o arroz esteja inchado, depois despeje em quatro tigelas pequenas, uma para cada comensal, que devem ser artisticamente invertidas em quatro pratos pequenos quando estiverem prontas para servir. Quando a sopa estiver pronta, sirva-a bem quente, acompanhada dos domos de arroz.
4) Bacalhau com molho de capuchinhos
ONDE: Convento dos Frades Capuchinhos de Verona (Vêneto)
INGREDIENTES (para 4 pessoas)
300 g de bacalhau seco (stockfish)
2 cebolas cortadas em rodelas
2 dentes de alho picados
5 ou 6 colheres de sopa de queijo parmesão ralado
250 ml de natas para cozinhar
4 ou 5 colheres de sopa de salsa picada
1 ou 2 colheres de sopa de azeite
3 folhas de louro sal
MODO DE PREPARO:
O bacalhau é delicioso, mas precisa ser temperado corretamente. Esta receita o transforma em um prato delicioso e aromático que, além disso, é elegantemente apresentado. Usar queijo no peixe não é comum, mas também não é incomum. Por outro lado, muitas outras receitas, até mesmo de outros países, ensinam que bacalhau e laticínios combinam bem. Bata bem o bacalhau ou compre-o já batido. Deixe-o de molho por dois dias, trocando-o três vezes. Escorra, retire as espinhas com cuidado e enrole. Corte o rolinho resultante em fatias de cerca de dois centímetros de espessura e disponha-as em uma panela grande, certificando-se de que fiquem bem compactadas, mas sem sobrepor. Polvilhe com cebola, alho e salsa. Despeje água suficiente na panela para quase cobrir o bacalhau, tempere com sal e regue com azeite. Cozinhe em fogo alto por 45 minutos, depois abaixe o fogo e continue cozinhando por mais duas horas e meia.
Neste ponto, pare de cozinhar e deixe o bacalhau descansar até o dia seguinte, para que possa absorver os sabores. No dia seguinte, volte a cozinhar em fogo baixo por cerca de 25 minutos, depois espalhe o creme sobre o bacalhau, polvilhe com queijo, adicione as folhas de louro e cozinhe em fogo baixo por mais 20 minutos. Adicione azeite e sal, se necessário. Depois de cozido, o bacalhau deve estar macio e cremoso.
5) Sopa "De Pizoi"
ONDE: Santuário de San Romedio Sanzeno, Val di Non (Trento)
INGREDIENTES (para 4 pessoas)
200 g de ervilhas partidas
2 batatas
1 funcho 1 alho-poró, 1 cenoura
pão amanhecido (a gosto)
2 colheres de sopa de farinha de trigo
5 ou 6 colheres de sopa de óleo ou manteiga
pimenta
sal
MODO DE PREPARO
"Uma iguaria para ocasiões solenes", segundo o frade que me ensinou. Por isso, sugiro saborear esta sopa no dia 15 de janeiro, dia em homenagem a São Romeu.
Ferva todos os vegetais em cerca de dois litros de água e, em seguida, bata-os em um liquidificador. Você obterá um delicioso creme verde. Aqueça o óleo em uma panela, adicione a farinha, levemente torrada na panela ou no forno, e adicione o creme de legumes, temperando com sal e pimenta a gosto. Sirva a sopa bem quente, acompanhada de croutons feitos de pão amanhecido, cortados em cubos e fritos em óleo ou dourados no forno.
6) Naviselle
ONDE: Mosteiro da Visitação Alzano Lombardo (Bérgamo/Lombardia)
INGREDIENTES (para 1 kg de biscoitos)
2 ovos
500 g de farinha
135 g de açúcar
40 g de manteiga
1/2 litro de leite
10 g de carbonato de amônio
1 pitada de sal
PREPARO
Esses biscoitos talvez tenham recebido esse nome devido ao seu pequeno formato de navio. No mosteiro, as irmãs mais velhas os preparavam para grandes celebrações, assando-os em um forno a lenha. Elas obtinham o nível de calor necessário acendendo uma grande fogueira e esperando que a lenha se transformasse em brasas. Em seguida, colocavam as assadeiras nas quais haviam preparado os biscoitos no forno, verificando o cozimento por uma pequena janela. Durante a guerra, o mesmo forno também era usado para assar pão. Misture os ovos com a farinha e, continuando a misturar, adicione lentamente o leite, o açúcar, o sal, a amônia e a manteiga amolecida. Misture até obter uma mistura homogênea e homogênea. Em seguida, coloque colheradas da mistura em uma assadeira untada e enfarinhada, moldando a massa em biscoitos em formato de barco, se desejar. Asse a cerca de 200 °C (400 °F) até dourar.
Fontes para você pesquisar sobre esse tema:
Montanari, Massimo. La fame e l’abbondanza: Storia dell’alimentazione in Europa. Laterza, 1993.
Este livro aborda a história da alimentação na Europa, com destaque para o papel dos mosteiros na preservação e inovação gastronômica durante a Idade Média.
Muzzarelli, Maria Giuseppina. Cucina e conventi: Ricette e segreti delle monache. Il Mulino, 2008.
A obra explora a contribuição das freiras na culinária italiana, especialmente na produção de doces e licores em conventos.
Patrone, Anna Maria Nada. Il cibo del povero e del ricco: La cucina medievale. Jaca Book, 1988.
Este livro detalha a alimentação medieval na Itália, destacando a influência dos mosteiros na criação de pratos simples e no uso de ingredientes regionais.
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